Um time de elite da ciência mundial -
integrado por brasileiros - está produzindo em laboratório modelos vivos
de tecidos cerebrais. As peças serão fundamentais para avançar no
tratamento de doenças como o Alzheimer, o Transtorno
Obsessivo-Compulsivo e a zika
FUTURO
No Brasil, Stevens Rehen coordena pesquisas sobre esquizofrenia e epilepsia usando mini-cérebros
Cilene Pereira
Eles podem ser contados nos dedos, e mesmo pouco numerosos
estão promovendo um dos maiores avanços científicos dos últimos tempos.
Podem ser chamados de criadores de cérebros. Trata-se de um grupo seleto
de cientistas que está construindo tecidos cerebrais vivos – ou
mini-cérebros – por meio dos quais o mundo começa a conhecer melhor o
desenvolvimento neuronal, os processos que estão na origem de doenças
como o autismo, a esquizofrenia e a zika e a resposta do organismo à
novas drogas contra enfermidades neurológicas.
Os mini-cérebros já se configuram como um recurso que divide a
história das pesquisas cerebrais entre antes e depois deles. Até hoje, o
estudo das engrenagens em ação no cérebro humano valia-se de análises
em tecidos retirados de cadáveres, cobaias ou por meio de exames de
imagens. A pequena disponibilidade de opções impõe enorme limitação,
principalmente se for considerado o quanto é complexo o funcionamento do
órgão.
Com os métodos de transformação, os cientistas do mundo todo passaram
a colher células de fontes acessíveis – pele e urina, por exemplo – e
mudá-las para células embrionárias. Desta forma, obtiveram mais
facilmente a matéria-prima ideal para a geração de praticamente todo
tipo de célula humana, inclusive neurônios. Essa mudança de status – ou
especialização de células, como o processo é chamado cientificamente – é
feita por meio do uso de uma combinação de substâncias, entre elas
fatores de crescimento e hormônios. Assim, consegue-se, em laboratório,
extrair células da urina de um indivíduo e, a partir delas, gerar um
neurônio. CALDO DE CULTURA
Produzir células nervosas foi um passo enorme, sem dúvida, mas não
bastava para a construção de mini-cérebros. O desafio era encontrar uma
maneira de estimulá-las a se reproduzir e de mantê-las nutridas. No
corpo, toda célula tem a sua disposição uma rede de vasos sanguíneos por
meio dos quais recebem oxigênio e nutrientes. In vitro isso não existe.
O obstáculo foi superado usando um líquido especial (meio de cultivo)
com nutrientes e fatores de crescimento no qual as células são mantidas
nutridas e oxigenadas – sem, entretanto, crescerem da mesma forma que o
órgão original. No vocabulário dos cientistas, elas formam organóides
cerebrais. “Nós os chamamos desse jeito porque são como o órgão, mas não
exatamente como ele”, gosta de explicar a pesquisadora inglesa Madeline
Lancaster, do MRC Laboratory of Molecular Biology, pioneira neste campo
de pesquisa. “Podemos ver os tecidos, cortá-los, conseguimos reconhecer
as regiões”, diz.
A receita permite construir modelos de tecidos saudáveis, com células
extraídas de voluntários sem doenças neurológicas, ou mini-cérebros
doentes, formatados a partir de células retiradas de pacientes. Os dois
estão possibilitando a observação de aspectos nunca antes vistos. “É um
tremendo avanço, pois podemos decifrar a nível molecular e celular de
que maneira as funções (motoras, conscientes, sensoriais etc) são
criadas no cérebro durante seu desenvolvimento”, diz o brasileiro
Alysson Muotri, diretor do Programa de Célula-Tronco do Instituto de
Medicina Genômica, da Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos.
No Brasil, cabe ao grupo coordenado por Stevens Rehen a liderança
pioneira neste campo de estudo. Professor do Instituto de Ciências
Biomédicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro e coordenador de
Pesquisa do Instituto D´Or de Pesquisa e Ensino, Rehen é autor dos mais
importantes trabalhos da área feitos em terras brasileiras. Os
organóides cerebrais criados em seus laboratórios estão ajudando no
estudo de doenças como esquizofrenia, Transtorno de Déficit de Atenção e
Hiperatividade, Epilepsia e Transtorno Obsessivo-Compulsivo, entre
outras enfermidades. E boa parte do que se sabe até agora sobre a
associação entre o vírus da zika e a microcefalia veio das pesquisas
conduzidas por sua equipe. Mini-cérebros produzidos pelo time infectados
pelo vírus cresceram 40% menos em comparação aos que não haviam sido
expostos. ”Nesse estudo confirmamos a relação entre microcefalia e o
vírus zika, usando os minicérebros” afirma o cientista. O trabalho foi
lido por mais de vinte mil pesquisadores em pouco mais de sete meses. Um
recorde mundial. RESPOSTA RÁPIDA
Os cérebros de laboratório também estão sendo fundamentais para agilizar
testes de medicamentos. É urgente a criação de remédios para doenças
neurológicas associadas ao envelhecimento populacional, como o Alzheimer
e o Parkinson, ou patologias que continuam a desafiar a medicina. Um
desses casos é o autismo. Nos Estados Unidos, o brasileiro Muotri usou
essas estruturas para testar 55 mil drogas contra o autismo só no ano
passado. “Encontramos cerca de vinte que são promissoras em reverter os
defeitos morfológicos e funcionais característicos das redes neurais de
autistas”, contou. Os medicamentos agora estão passando por testes de
validação. A expectativa é que entrem em ensaios clínicos nos próximos
anos.
Mais urgente ainda é encontrar um remédio que proteja contra os
prejuízos causados pelo vírus da zika. Por isso, tanto o grupo de
Muotri, nos Estados Unidos, e de Rehen, no Brasil, utilizam nessa
corrida contra o tempo o auxílio dos mini-cérebros. Os dois grupos
valem-se de medicações existentes. “O raciocínio é simples: drogas novas
levam entre doze e quatorze anos para entrar no mercado a um custo de
US 2,6 bilhões”, diz Muotri. “Ao testarmos medicamentos disponíveis,
reduzimos o custo e o tempo drasticamente.”
O trabalho na Universidade da Califórnia identificou pelo menos uma
droga promissora, que bloqueia a ação do vírus no sistema nervoso. O
início dos estudos clínicos nos Estados Unidos está previsto para maio.
Muotri pretende trazer os testes também para o Brasil, onde seriam
coordenados por sua parceira de pesquisa, Patrícia Braga, da
Universidade de São Paulo. No Rio de Janeiro, uma dezena de medicações
entrou na lista para testes do grupo de Stevens Rehen e uma das
substâncias analisadas também demonstrou resultados bastante animadores.
Os detalhes para viabilizar os testes clínicos estão em andamento.
Acredita-se que os ensaios comecem ainda no primeiro semestre. O INÍCIO DE TUDO
Os mini-cérebros consistem em um modelo tridimensional de neurônios
vivos. Como no cérebro, as células se dividem, adquirem as
características desejadas pelos pesquisadores e juntam-se em rede POR QUE SÃO IMPORTANTES
Permitem que os cientistas pesquisem o desenvolvimento neuronal, doenças
neurológicas e testem medicações em tecidos cerebrais humanos vivos. É a
primeira vez que isso é possível COMO SÃO PRODUZIDOS
• Células são extraídas de pacientes ou de voluntários sadios. Elas
podem ser retiradas de várias fontes. Entre as mais comuns estão a pele e
a urina
• As células passam por uma reprogramação que as remete ao estágio de
células-tronco embrionárias, etapa na qual ainda não são
especializadas,. Podem ser transformadas em células de qualquer parte do
corpo
• Por meio de uma combinação de substâncias, essas células são
induzidas a se especializar na célula desejada. No caso, neurônios
• Depois, são imersas em culturas capazes de garantir sua multiplicação até que atinjam o estágio almejado
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