Um ano após a prisão definitiva de Roger Abdelmassih, ex-médico condenado por estuprar pacientes, suas vítimas tentam curar as cicatrizes do abuso e retomar a vida, mas ainda convivem com a dúvida sobre o paradeiro dos seus embriões
Camila Brandalise (camila@istoe.com.br)
Ao ser
procurada para participar desta reportagem, a psicóloga Viviane H., 43
anos, levou três dias para responder se aceitaria posar para uma foto,
como as que ilustram essas páginas. Com a negativa, veio o pedido para
não divulgar nem o sobrenome e uma explicação: “Não estou pronta para me
expor. Essa história me incomoda demais. Mesmo já tendo passado tantos
anos, ainda ficaram muitas marcas.” O drama de Viviane começou em 1998,
quando ela e o marido procuraram a clínica de reprodução de Roger
Abdelmassih, então a mais famosa da América Latina, para terem um filho.
Por quatro anos, Viviane se submeteu a torturantes tentativas para
engravidar. Na segunda, houve sangramento e dores na região vaginal. Na
terceira, hiperestimulação do ovário por excesso de hormônio. Na quarta,
perfuração da uretra provocada pelas agulhas de aspiração dos óvulos.
Na sexta e última, quando se levantava para ir embora, Viviane foi
empurrada por Abdelmassih, que a beijou e esfregou seu órgão genital
nela. A psicóloga fugiu, com medo, e nunca mais voltou à clínica. Antes
do abuso, ainda, ouviu a proposta de pegar espermatozóides de outro
homem para fecundar seus óvulos, pois os do marido seriam de baixa
qualidade. “Vivi um pesadelo no lugar onde fui buscar um sonho e ele
parece voltar sempre, em forma de pensamentos que me assombram”, diz.
Desde 2014, o ex-médico celebridade está na prisão, cumprindo pena de
278 anos por estuprar mais de 50 mulheres em seu consultório. As dezenas
de pacientes que viveram o horror dos abusos tentam esquecer o passado e
seguir adiante. Mas as cicatrizes teimam em voltar.
MONSTRO
Roger Abdelmassih, condenado a 278 anos de prisão
por estuprar 50 pacientes em seu consultório
O trauma que Viviane carrega é
compartilhado por outras 18 vítimas de Abdelmassih, que se uniram em uma
ação contra o Brasil protocolada no dia 17 de agosto na Corte
Interamericana de Direitos Humanos. Elas exigem que o País crie uma
legislação específica para manipulação genética e também pretendem
pressionar o Estado para que se investigue o paradeiro dos embriões
congelados das ex-pacientes. À frente do processo estão os advogados
Eduardo de Almeida Sampaio e Martim Sampaio, diretor de direitos humanos
da Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo, e Vana Lopes, 55 anos,
vítima de Abdelmassih em 1993 e a primeira a denunciá-lo publicamente,
cuja história deu origem ao livro “Bem-Vindo ao Inferno”, no qual relata
sua caçada para encontrá-lo quando estava foragido no Paraguai. “Essas
vítimas ficaram sem atendimento e nada foi feito pelo Brasil para
evitar que surja um novo Roger Abdelmassih”, afirma Martim Sampaio.
“Tenho um documento assinado atestando a existência de dez embriões
meus, mas ninguém diz o que foi feito com eles”, diz Vana. “As outras
vítimas e eu não podemos ficar sem saber o que aconteceu. É o nosso DNA
que está espalhado por aí.” Em entrevista ao programa “Fantástico”, em
dezembro de 2014, o filho de Abdelmassih, Vicente Ghilardi, que também
trabalhava na clínica, afirmou que dois mil embriões congelados entre
1999 a 2009 estão com ele, mas alguns podem ter se perdido. Com mais 31
mulheres, Vana também assina uma carta que será enviada ao papa
Francisco pedindo uma audiência para chamar atenção para os “crimes de
abortos científicos cometidos contra vontade, quando em tratamento para
engravidar na clínica do ex-médico estuprador Roger Abdelmassih”.
Além das histórias envolvendo traumas por
abuso sexual e das dúvidas sobre se os embriões foram descartados ou
usados em outros casais, há outros casos vindo à tona marcados pela
tragédia de ter passado pelas mãos de uma das maiores vergonhas da
história da medicina brasileira. Em um relato surpreendente, a oficial
militar M. revela ter saído da clínica após a retirada de óvulos com
imagens perturbadoras em sua memória. Lembrava-se de Roger passando a
mão em seu corpo e a impedindo de abrir a porta do quarto de
recuperação. “Pensei na possibilidade de estupro, mas achei que seria
absurdo, afinal ele era um médico altamente conceituado e procurado por
políticos e artistas.” Mas outro drama ainda estava por vir. M. ficou
grávida de gêmeos. Após o parto, ao acordar, perguntou ao marido como
estavam as crianças, que haviam sido levadas ao Centro de Tratamento
Intensivo do hospital. “Ele estava pálido e com ar preocupado. Disse
que os filhos não eram seus. Perguntei como tinha certeza e ele me disse
que o tipo sanguíneo era incompatível com o dele. Daquele dia em
diante, ele se distanciou de mim e das crianças.” Graças a Roger
Abdelmassih, a reprodução não foi só de pessoas, mas também de
sofrimentos.
Fotos: Bruno Poppe; João Castellano/Ag. Istoé; Airam Abel, FABLICIO RODRIGUES
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