Os pacientes com tumores ainda muito iniciais e pouco risco de agressividade convivem com uma crescente (e ruidosa) tendência: a redução do volume de terapias em casos específicos. É o começo de uma nova era da oncologia, desafio para médicos e pacientes
É postura indelevelmente colada a cânceres em fases extremamente iniciais ou lesões que ainda não significam a doença com todo o seu pesado estigma. Representa uma reviravolta na medicina. Quebra uma regra prevalente desde os primórdios, a de extirpar todo e qualquer sinal de câncer no organismo, sobretudo quando ainda ele não se tornou ameaçador, na tentativa de zerar o risco de morte. "Doenças extremas requerem tratamentos extremos", escreveu o grego Hipócrates, no século V a.C., no prólogo de uma evolução que nunca cessou. Cortemos para os dias atuais: proliferam aparelhos para rastrear tumores ainda microscópicos, de modo a eliminá-los na gênese ou submetê-los a doses aniquiladoras de medicamentos antes que o grande medo se instale. O arsenal de drogas, eficientíssimo, associado a investigações minuciosas, inaugurou uma realidade ancorada num paradoxo: quanto mais precoce é o diagnóstico, maiores são as chances de o tratamento ser excessivo. Diz o mastologista Antonio Frasson, do Hospital Albert Einstein, em São Paulo, e professor da PUC do Rio Grande do Sul: "Muitas mulheres foram curadas com os avanços tecnológicos nos últimos anos, mas outras tantas receberam tratamentos agressivos sem necessidade".
A equação é difícil. Quando, enfim, dizer não a um tratamento? Recomenda-se, em busca da resposta, compreender a história recente dos cuidados com o câncer de mama, um dos mais incidentes entre as mulheres. Há 1,7 milhão de novos casos a cada ano, em todo o mundo. No Brasil, 58 000. Um a cada quatro cânceres femininos é de mama. Em uma modalidade específica, sempre se supôs haver zelo exagerado. No carcinoma in situ, as células anormais ainda estão confinadas aos ductos mamários, os canais com a função de drenar o leite materno. Esse tipo de lesão passou a ser detectado na década de 80, com a implantação do rastreamento com a mamografia. Nos primeiros anos, 3% dos diagnósticos de tumor de mama eram desse tipo. Nos dias atuais, com o refinamento e a antecipação dos exames, o índice saltou para 25%. Até muito pouco tempo atrás, as mulheres diagnosticadas com o in situ eram, sem exceção, tratadas com cirurgia, radioterapia (feixes de radiação) e hormonoterapia (o bloqueio de hormônios femininos que estimulam o crescimento tumoral). O objetivo maior era eliminar células nocivas que pudessem escapar da incisão cirúrgica na região doente. Mas o grande número de diagnósticos sugeriu que apenas 30% dos casos culminavam em tumor agressivo. E não todos eles, como se pensava. O restante apresenta um comportamento lento e sem malignidade. Ele regride e até desaparece. Quando cresce, isso se dá tão lentamente a ponto de não causar dano algum à saúde da mulher. Esse foi o sinal decisivo para pensar na possibilidade de freio nos tratamentos.
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Estima-se que até 75% dos pacientes com cânceres inofensivos, como o carcinoma in situ, sejam submetidos a doses exageradas de terapias. Nessa família se enquadram também alguns tipos de câncer de próstata, tireoide e pele, além da mama. Eles têm em comum o fato de serem vagarosos, apresentarem baixa malignidade e serem formados pelas chamadas células de revestimento. Ou seja, ficam restritos à superfície do órgão que ocupam. Recentemente, um grupo de médicos dos Estados Unidos, liderado pela oncologista Laura Esserman, da Universidade da Califórnia, propôs, em artigo também no JAMA Oncology, a reclassificação dos tumores menos graves - em vez de receberem a denominação "câncer", aquela dos dicionários, passariam a se chamar "lesões indolentes de origem epitelial". Na prática, independentemente da alcunha que a doença possa levar e por mais vagarosa que se mostre uma transformação celular, a decisão de um médico de reduzir um tratamento no caso do câncer inicial é delicadíssima. Não há ainda tecnologia capaz de prever com precisão quais células se tornarão malignas, tampouco quando e como isso ocorrerá. Cada caso deve ser avaliado e tratado de forma absolutamente individual. "Na maioria das vezes, as ferramentas disponíveis ainda não me permitem afirmar com 100% de segurança se uma decisão médica se configura ou não como excesso de tratamento", diz o oncologista Sergio Simon, do Centro Paulista de Oncologia, em São Paulo, e do Hospital Albert Eisntein.
Há, portanto, um beco de saídas estreitas. Como reage o paciente diagnosticado com um câncer inicial, com pouco risco de vir a ser agressivo, se lhe oferecem um caminho sem remédios nem cirurgias? Pode ser penoso submeter-se a essa nova linha. É compreensível. Para muitos, é inconcebível a ideia de não usar todos os recursos para extirpar um tumor ou reduzir o risco de seu retorno. "Testes genéticos desenvolvidos na última década ajudam a determinar quais terapias são as mais indicadas para alguns tipos de tumor, evitando, assim, o excesso de procedimentos", diz Fernando Maluf, chefe do departamento de oncologia clínica do Centro Oncológico Antônio Ermírio de Moraes, da Beneficência Portuguesa, em São Paulo. Há casos, contudo, evidentemente avessos a essa postura mais leve, mais tranquila. São os cânceres de forte componente genético, como o que acometeu a atriz americana Angelina Jolie. Em 2013 ela descobriu ser portadora de uma anomalia no gene BRCA1, que já havia vitimado a mãe, a tia e a avó. Mulheres com esse tipo de alteração têm 85% de probabilidade de desenvolver tumores mamários e risco 60% maior de apresentar câncer no ovário. Por causa disso, Angelina decidiu extirpar as mamas e os ovários de forma preventiva.
A ideia de preservar o paciente o máximo de tempo possível dos violentos efeitos colaterais dos tratamentos oncológicos começou a ser utilizada no mundo masculino, o do câncer de próstata, nos idos da década de 90. Os tipos de tumor da glândula em estágio inicial e de progressão lenta podem, perfeitamente, ser apenas acompanhados com exames de rotina. Em média, o paciente faz de seis em seis meses uma extensa e minuciosa bateria de exames, de modo a manter o controle da evolução da doença - são repetidas, por exemplo, dosagens sanguíneas das taxas da proteína associada ao tumor, o chamado PSA, e biópsias para medir a agressividade. "Cerca de 10% a 15% dos doentes já são acompanhados desse modo", diz Gustavo Guimarães, urologista do A.C. Camargo Cancer Center. São 7 000 novos pacientes todos os anos nessa condição. Esses doentes deixam de se submeter a cirurgia de extração total da glândula, um procedimento que oferece o risco de 20% a 50% de incontinência urinária e impotência sexual irreversível. Diz um dos aforismos mais utilizados na medicina, desde o fim do século XIX, e agora recuperado pela oncologia: primum non nocere (em primeiro lugar, não se deve causar dano).
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