Ao menor sinal de rejeição ou diante de
um mero descontentamento, homens estão matando suas mulheres como nunca
se viu no Brasil — e, em alguns casos, assassinam também os filhos e se
suicidam
TIROS NA MADRUGADAO
casal Cláudia e Cristian: ela insistia para que o marido tomasse a
medicação necessária; ele a matou a tiros e se suicidou (Crédito:
Divulgação)
Antonio Carlos Prado
“Diz que eu não sou homem, diz agora que eu não sou homem,
quem aqui não é homem?”, berrou diversas vezes André Luis Santos para
Mizaelly Mirelly da Silva, uma jovem de vinte e dois anos. “Vo… cê não…
é… ho… mem”, balbuciou Mizaelly com a frase entrecortada pela
dificuldade de respirar ao estar sendo estrangulada. Seriam as suas
últimas palavras. Morreu. O algoz foi seu namorado. Ao constatar que o
corpo da parceira já estava inerte, André matou também o filho de sete
meses. Fugiu. Foi preso pela polícia de São Paulo, onde o crime
aconteceu. E confessou: “estrangulei porque eu não queria esse filho e
ela não abortou”. O caso se deu no bairro do Jaguaré, predominantemente
de classe média.
Um sofisticado condomínio no elegante bairro paulistano de Perdizes
se transformou em palco de outro trágico e desesperador espetáculo de
passionalismo na fria e garoenta madrugada do último domingo. O delegado
de polícia Cristian Sant’Ana Lanfredi, em licença médica de seu cargo
na Assembleia Legislativa de São Paulo devido a um severo quadro de
depressão, saiu de seu apartamento com a filhinha de seis anos no colo e
foi ao apartamento vizinho onde mora o padrinho da menina. Pediu então
para que cuidasse da garota, alegando que sua mulher, a juíza do
Trabalho Cláudia Zerati, acabara de abandonar o casamento, saíra do
prédio e ele precisava localizá-la. A afilhada, assim que se viu em
segurança, relatou outra história: sua mãe e seu pai haviam discutido
muito porque ele se recusava a tomar a medicação antidepressiva
prescrita pelo médico. Era tal o nervosismo da criança, que o padrinho
pressentiu o pior. Desceu à garagem para conferir se os dois carros do
casal estavam lá — e estavam. Chamou então o zelador, foram ao
apartamento de Cristian e, coração na garganta, abriram a porta que
estava destrancada: horror, sangue, morte. Segundo a polícia, Cristian
matou a esposa com um tiro na testa e, na sequência, suicidou-se também
com um tiro, disparado no lado direito da cabeça. Um dos relógios do
apartamento marcava seis horas da manhã. ESTÚPIDA EPIDEMIA PURA PERVERSÃO O
parceiro de Mizaelly a mandava falar “diga que não sou homem” enquanto a
estrangulava. Ao vê-la inerte, matou o filho de sete meses
A cidade de São Paulo, a casa do Jaguaré e o condomínio das Perdizes
são apenas um fechar de foco sobre um Brasil no qual se instaura e se
espalha uma nova, estúpida, triste e psicótica epidemia — a epidemia da
passionalidade. Em todo o País, nos últimos doze meses, estatísticas do
Ministério da Justiça apontam que duas mil e oitocentas mulheres foram
assassinadas por seus companheiros, numa questão de gênero, o chamado
feminicídio. De volta a São Paulo, onde quatro mortes de mulheres
aconteceram enquanto a polícia dava os primeiros passos na investigação
do crime do condomínio já citado, estima-se que um feminicídio ocorra a
cada quatro dias — setenta concentrados nos últimos meses, entre eles o
que vitimou a auxiliar de enfermagem Nathalia dos Santos Silva. O
criminoso fugiu.
Crimes passionais sempre aconteceram, e uma de suas motivações
prevalentes é o ciúme — ou seja, o tolo ditado de que “o ciúme é o
perfume do amor” pode até ser verdadeiro, mas desde que tal sentimento
se mantenha num contorno de racionalidade. Fora disso não há fragrância,
há cheiro de pólvora, vela e caixão. O que ocorre nos dias atuais, no
entanto, é que o assassino mata a mulher, mata os filhos e, algumas
vezes, se suicida, extinguindo da face da Terra o seu núcleo familiar —
deixando-se claro que a maioria ainda prefere fugir. Mergulhando na
mente dos que se matam após o crime, é como se fossem absurdas Medeias
pelo avesso: na tragédia grega, a clássica personagem assassina os
filhos para punir Jasão (que pretende abandoná-la), deixando nele a dor
da perda das crianças. Quanto aos homens-Medeia do presente, eles punem a
mulher, matando-a; punem os filhos, matando-os; e, paradoxalmente punem
a si próprios, suicidando-se.
É inevitável que se indague a interlocutores e aos botões da nossa
própria alma o que leva uma pessoa bem sucedida profissionalmente,
família consolidada e situação financeira estável, a cometer homicídio
seguido de suícidio. O que move as mãos para o gesto extremo e criminoso
de matar? E a naturalidade da indagação vem do vício em considerar,
numa imaginária escala de risco para esse tipo de comportamento, que a
probabilidade de sua ocorrência esteja mais ligada a indivíduos em
condições de vida simples e que não escalaram sequer a metade da
pirâmide social. A resposta, quem nos dá, é a dura realidade, na medida
em que apresenta aos nossos olhos tantos cadáveres de mulheres — e,
eventualmente, de suas crianças. Tudo isso se deve à passionalidade que
anda à flor da pele, à passionalidade que cega e vê numa rosa vermelha,
por exemplo, não uma rosa vermelha, mas, sim, uma hemorragia. Vê no
corpo da mulher que trai ou que parte não mais um corpo animado, mas,
sim, um aboslutamentente nada.
No Rio de Janeiro, amigos e familiares do engenheiro Nabor Coutinho
de Oliveira Júnior podiam esperar tudo na vida, menos que ele matasse a
sua mulher, Lais Khouri. Pois ele a matou, e matou os dois filhos e se
suicidou. A esposa morreu com facadas; as crianças a golpes de martelo;
ele saltou do décimo oitavo andar do condomínio de altíssimo luxo em que
a família morava na Barra da Tijuca. Faca, martelo, mergulho no ar,
isso é mais que violência, é mais que a suprema irritabilidade a vazar
pelos poros, é mais… não sei que nome dar. A sociedade está psicótica.
E, caso após caso, a surpresa vem incomodar. O empresário Oscar Augusto
Ferrão Filho, um dos sócios dos estacionamentos da Rede Park, atendeu
mecanicamente o telefone que tocava, porque é assim que todos nós,
acostumados a falar ao telefone, o atendemos. Veio a voz de seu irmão
João Alberto. Veio a bomba atômica do terror e do macabro: “acabei de
matar a minha mulher, a Renata, e agora vou me matar”. Um assessor da
empresa correu à cobertura em que João Alberto morava no bairro
paulistano do Itaim. Com certeza, gostaria de jamais ter visto o que
viu: Renata estava tombada no closet com um tiro na cabeça; no andar de
cima, na piscina, boiava, também já sem vida, o corpo do empresário. Em
Recife, no bairro do Rosarinho (classe média alta), um namorado não
aceitou na semana passada a separação amorosa e matou com crueldade a
companheira (nomes preservados pela polícia). A não aceitação do final
da vida a dois, aliás, vem sendo também motivo de crime, ao lado do
ciúme, pagamento de pensão alimentícia e disputa pela guarda de filhos. A MORTE PELO TELEFONE João Alberto telefonou para o irmão: “Acabei de matar a Renata (no detalhe), e agora vou me suicidar.” Na cobertura em que moravam, um corpo tombou no closet, o outro, na piscinaPaís do feminicídio
Foi esse último fator, por exemplo, que disparou a ira e o revolver
com que o PM Maurício Gama fulminou a ex-mulher Celina Mascarenha, na
presença do filho. Quando o garoto lhe perguntou o porquê, ele respondeu
com ironia e sarcasmo: “é para a mamãe descansar um pouco”. Há, no
passado, dois episódios de passionalismo e irracionalidade que
alimentaram até a mídia internacional: Doca Street matou a modelo Angela
Diniz porque ela o traiu com outra mulher, e o cantor Lindomar Castilho
assassinou a sua esposa Eliane de Grammont, porque ela já não o queria
como marido. Existe, no entanto, um traço comum envolvendo esses
delitos, independentemente de época ou gerações. Em todos eles, o homem
feminicista é extremamente narcisista, coisifica a parceira e a
transforma em sua propriedade. Não é incomum esse homem não estar nem aí
para a mulher, enquanto ela permanece ao seu lado, mas desesperar-se e
tornar-se violento se surgir uma ameaça de rompimento. Quando essa
mulher, antes dominada e transformada em coisa (espelho narcísico do
companheiro, pela psicanálise), cogita despedir-se da relação, o homem
portador de tal transtorno vê sua “cristaleira de narcisismo” virar
cacos. Não suporta isso, não crê que esses cacos se colarão novamente. E
então mata na esperança de conseguir voltar a ser, ele mesmo, o seu
espelho. O que está em jogo é prepotência e arrogância. Há no País uma
estatística de tirar o ar: cerca de trinta por cento das mulheres
assassinadas morreram nas frias mãos de seus parceiros.
Qual a solução para isso tudo? É difícil. Desensandecer uma sociedade
e desarraigar essa espécie de comportamento não é o mesmo que tocar
meia dúzia de malucos que tomam banho nus em um chafariz público. Mas,
pelo menos, sabe-se qual não é a solução — e isso já é muita coisa. No
Brasil, decretos e leis brotam do nada e não resolvem, igualmente, nada.
A Lei Maria da Penha e a criação do termo feminicídio, por si só, não
mudaram e nem mudarão o quadro de passionalidade. Demagogicamente Dilma
Roussef criou essa expressão, e daí? O número de mulheres agredidas e
mortas só fez aumentar exponencialmente, chegando ao seu auge nas
últimas semanas e, infelizmente, sinalizando que seguirá crescendo. O
temperamento humano (um dos fatores genéticos que compõem a
personalidade) não muda por decreto. Homens portadores de transtorno da
personalidade narcísica não deixarão de ter baixíssimo limiar de
tolerância ao verem negado, por uma mulher, o menor de seus carpichos.
Com certeza, é hora de reabrir o clássico Raízes do Brasil, de Sérgio
Buarque de Hollanda. Ele definiu e explicou porque a “cordialidade
brasileira” é passional, e, assim sendo, pode explodir para o bem ou
para o mal. Loucamente estamos vivendo na segunda alternativa. Que o
diga a dor eterna dos parentes das mulheres assassinadas, dos parentes
dos filhos assassinados, e dos parentes dos assassinos suicidas. TRAGÉDIA NA BARRA DA TIJUCA O
engenheiro Nabor e seus dois filhos: ele assassinou as crianças a
golpes de martelo, matou a esposa a facadas e saltou do décimo oitavo
andar do prédio onde moravam
Dentro dos contornos da violência a massacrar o gênero feminino pelo
único fato de ele ser feminino, embora no caso a seguir não se possa
falar direitamente em passionalismo porque isso implica idade adulta, é
estarrecedor o que se viu em Goiânia na semana passada. Um garoto de
treze anos matou a facadas uma adolescente de catorze, sua vizinha e
colega de escola. É influência dos tantos episódios de crimes
passionais? O menino fez o que fez porque psiquiatricamente é portador
de transtorno de conduta (indicativo de psicopatia na vida adulta)? É de
tudo um pouco. À polícia ele disse que assassinou Tamires Paula de
Almeida e carregava a mórbida intenção de “acabar com mais duas”. Disse
ainda: “foi para ver de luto a sala de aula”. Agora prepare a cabeça, o
coração e o estômago: “matei Tamires porque mulheres são mais fracas”.
Brasil, é muita dor. Com reportagem de Thais Skodowski
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