Estudo revela que mestre do Renascimento sofria de severa artrite na velhice, período em que produziu obras-primas
Raul Montenegro (raul.montenegro@istoe.com.br)
As autoridades
da Igreja da Santa Cruz, em Florença, onde está enterrado o corpo do
artista renascentista Michelangelo Buonarroti (1475-1564), nunca
permitiram que os restos mortais do mestre das esculturas fossem
analisados pela ciência. Pesquisadores italianos e australianos, no
entanto, descobriram em fevereiro uma forma de driblar a proibição para
desvendar o segredo das mãos que criaram algumas das maiores obras de
arte de todos os tempos, como a estátua de Davi e os afrescos da Capela
Sistina, no Vaticano. Analisando pinturas e cartas, eles revelaram que
em seus últimos 15 anos de vida Michelangelo sofria fortes dores nos
dedos decorrentes de uma artrite degenerativa conhecida como
osteoartrite. Apesar disso, o artista criou neste período obras-primas
como a Pietà de Florença e os projetos da Basílica de São Pedro, a sede
do catolicismo no mundo. “O diagnóstico oferece uma explicação plausível
para a perda de destreza de Michelangelo na velhice, enfatizando seu
triunfo sobre a enfermidade”,escreveram os responsáveis pelo estudo em
artigo publicado no periódico científico “Journal of the Royal Society
of Medicine”.
DESCOBERTA
Michelangelo (acima) e as pinturas que permitiram ver que ele tinha artrite nas mãos (abaixo)
A pesquisa comparou retratos de
Michelangelo quando novo, feitos por Rafael Sanzio (1483-1520) e por ele
mesmo, com três obras que mostram -no entre 60 e 65 anos. Os acadêmicos
concluíram que a mão esquerda do artista não tinha sinais de artrite na
juventude, mas que a doença estava instalada, em estágio avançado, na
velhice. O mal acometeu principalmente seu polegar e indicador e pode
ter sido acelerado pelas constantes marteladas e entalhes. “As
deformações nas mãos são lesões típicas de degenerações de ossos e
cartilagens causadas por traumas frequentes ao esculpir”, disse à ISTOÉ o
cirurgião plástico Davide Lazzeri, que chefiou o estudo. “Os sintomas
são enrijecimento e dores.”
A equipe de Lazzeri analisou ainda
correspondências de Michelangelo nas quais ele reclamava de dores nas
mãos e em outras articulações. Em 1552, a artrite causava desconforto
quando o mestre escrevia. Em 1563, a doença havia se tornado tão severa
que ele apenas assinava suas cartas. “Se acometer articulações que fazem
o movimento de pinça dos dedos, você tem dificuldades para pegar numa
caneta ou cortar um bife”, afirma José Goldenberg, reumatologista da
Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). “Imagine para um artista.”
Mesmo assim, continuou desenhando e esculpindo até o fim, aos 88 anos,
às vésperas de seu 89º aniversário. “O trabalho foi a salvação e a causa
das mãos doentes de Michelangelo, que continuou em ação até seis dias
antes da sua morte”, diz Lazzeri.
HABILIDADE
A Pietà de Florença, uma das maravilhas que o mestre realizou apesar da dor que sentia
Apesar de suas obras mais famosas terem
sido feitas entre os 20 e os 40 anos de idade, o próprio artista
costumava dizer que “ninguém pode ser considerado um mestre antes do fim
de sua arte e de sua vida”. Debilitado pela osteoartrite, criou
obras-primas como uma série de Pietàs, incluindo a de Florença (na
foto), e os desenhos da Catedral de São Pedro, em Roma, além de várias
outras esculturas, pinturas e projetos arquitetônicos. Professor de
história da arte da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e
curador-chefe do Museu de Arte de São Paulo (Masp) entre 1995 e 1997,
Luiz Cesar Marques Filho considera que em sua fase final Michelangelo
usava muito a técnica “non finito”, um gosto pelo esboço comum a vários
gênios que se libertam da execução pormenorizada em favor da elaboração
da ideia. “Não acredito que isso se deva à artrite e até diria que as
obras da velhice são as mais interessantes”, afirma.
Hoje, a osteoartrite é uma aflição que
atinge 9,6% dos homens e 18% das mulheres acima de 60 anos no mundo, com
80% sofrendo limitações de movimentos e 25% impossibilitados de fazer
atividades cotidianas, de acordo com a Organização Mundial da Saúde
(OMS). A realização de atividade física repetitiva por mais de 10 anos
aumenta o risco em 9,3 vezes. Michelangelo entrou para as estatísticas
dessa e de outras doenças, como atestam diversas pesquisas (leia
quadro). Sua personalidade obsessiva, reclusa e antissocial fez com que
se levantasse a hipótese de que fosse portador da síndrome de Asperger,
uma forma de autismo, mas historiadores ainda especulam que ele possa
ter sido contaminado por chumbo, uma enfermidade comum a pintores por
causa do contato constante com tintas. A intoxicação às vezes carrega
sintomas psicológicos, como a depressão, e também pode explicar o
comportamento do mestre. Daqui para frente, a equipe quer confirmar as
conclusões diretamente no cadáver de Michelangelo. Eles pressionarão as
autoridades italianas para exumar o corpo e conduzir exames nos restos
mortais. “A descoberta vai aumentar o interesse sobre a evolução da
produção do artista ao longo de sua carreira”, afirma Lazzeri.
FOTO: Marie-Lan Nguyen
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