O País vive mais uma vez uma vergonhosa epidemia da doença. Do início do ano até a metade de abril, 746 mil pessoas foram infectadas e um brasileiro morreu a cada onze horas vítima da enfermidade. Por que chegamos a este ponto?
Fabíola Perez e Ludmilla Amaral
O país vive mais uma vez uma epidemia da doença. A repórter Ludmilla Amaral traz mais informações.
O empresário Frederico Leitão, 34 anos, de
São Paulo, não sabe se voltará a enxergar totalmente com seu olho
esquerdo. Sua capacidade de visão foi afetada depois que ele se tornou
mais um brasileiro infectado pelo vírus da dengue. O vírus causou uma
neurite óptica (inflamação do nervo óptico), doença que chegou a
tirar-lhe 90% da visão. Hoje, recuperou 70% dela, mas teme não tê-la
completamente restaurada. O drama do empresário, dono de uma gráfica,
começou no final de março, quando surgiram os primeiros sintomas da
doença. A febre, as dores no corpo e nos olhos foram a senha para um
inferno que já dura mais de um mês. Primeiro, foi a preocupação com o
trabalho. “Não podia repousar por mais de dois dias porque teria
prejuízo”, conta. Depois, a dor no olho que não passava e a perda quase
total da visão. “Fiquei apavorado”, lembra. Após ser atendido por dois
oftalmologistas, um neuro-oftalmologista e, finalmente, por um
neurologista, ele ficou nove dias internado. Agora, continuará o
tratamento.
Registrar a história de Frederico é
fundamental. Assim como as de Laís Garcia, 25 anos, e a de seu pai,
Henrique Garcia Júnior, 54 anos, e a de Sheila Storel, 38 anos,
relatadas nesta reportagem. Eles estão entre os 746 mil brasileiros que
tiveram dengue de janeiro até meados de abril, mas quando os números
atingem um patamar assim tão dramático, corre-se o risco de passar-se a
enxergar a situação somente como um fenômeno incômodo de saúde pública.
Perde-se de vista o fato de que cada uma dessas 746 mil pessoas teve sua
vida transtornada por causa da doença – e isso, essa dimensão
individual, não pode ser pulverizada em estatísticas. Alguns mais,
outros menos, todos foram obrigados a se deparar com um sistema de
atendimento que não dá conta de prestar auxílio a tanta gente, perderam
dias de trabalho, de estudo, de descanso. Sem falar nos 229 cidadãos que
morreram até agora em uma epidemia que deveria ter sido evitada.
Hoje, o Brasil é um país acuado pela
enfermidade. Em São Paulo, há 401 mil casos. A ameaça da doença
tornou-se assunto recorrente e sua prevenção, em muitos casos objeto de
obsessão. O empresário Victor Stockunas, 59 anos, preside o condomínio
onde mora, em Alphaville, região metropolitana de São Paulo. Colocou na
portaria uma placa com os dizeres ‘Agora é guerra’. Também determinou
que os seguranças visitem as casas para saber se as medidas de prevenção
estão sendo seguidas para evitar o surgimento de criadouros do Aedes
aegypti, o mosquito transmissor do vírus responsável pela doença. “Cada
um deve fazer a sua parte”, prega.
A venda de repelentes explodiu. O
laboratório Osler, fabricante do repelente Exposis, aumentou em onze
vezes sua capacidade de produção para atender as farmácias. De janeiro a
abril de 2014, foram produzidos 100 mil frascos do produto. No mesmo
período deste ano, o número subiu para 1,1 milhão de unidades. Nas redes
de farmácias, o volume de vendas é expressivo. Nas contas da Drogaria
São Paulo, houve crescimento de 107% em vendas de repelente comparado ao
primeiro bimestre de 2014. Na Ultrafarma, a elevação foi de 195% em
relação à 2014. “Nas lojas físicas, em São Paulo principalmente, mudamos
o posicionamento dos repelentes que antes ficavam junto aos produtos de
verão. Agora, eles ficam no Caixa, com mais visibilidade”, afirma
Marcos Ferreira, vice-presidente da Ultrafarma.
Em muitas escolas, a rotina mudou. Na Kid´s
School, em Cotia, na Grande São Paulo, as crianças são informadas sobre
a importância de se proteger com repelentes e o que fazer para evitar a
formação de criadouros. “Professores e funcionários passaram a usar
repelente todos os dias”, conta Cátia Pacicco, coordenadora pedagógica
da escola. Na UP School, em São Paulo, há pulverização com inseticida
quinzenalmente. “Também solicitamos à prefeitura a visita de agentes
sanitários”, diz Patrícia Lozano, diretora pedagógica.
Nos serviços de saúde, imprimiu-se a
atmosfera do caos. Centros públicos estão lotados, obrigando a
instalação de tendas para tratamento. Na que foi montada na Brasilândia,
um dos bairros da capital paulista mais atingidos, já foram realizados
3,7 mil atendimentos desde abril. O local é uma parceria do Hospital
Israelita Albert Einstein – um dos mais sofisticados entre as
instituições privadas do País - com a Secretaria Municipal de Saúde.
Uma equipe com seis médicos, cinco enfermeiros, seis técnicos em
enfermagem, três técnicos administrativos e quatro biomédicos prestam o
atendimento. Eles saem do hospital, no Morumbi, na zona sul, as seis e
meia da manhã, para dar conta de começar a atender na Brasilândia, do
outro lado da cidade. “Quando chegamos já tem gente esperando”, conta o
infectologista Alexandre Marra. “Trabalhamos mais do que no Einstein,
mas queremos ajudar”, diz a enfermeira Maria Roza de Oliveira.
A realidade é menos dura nos hospitais
privados, mas mesmo assim houve dias nos quais era preciso esperar horas
por atendimento. No Einstein, desde janeiro foram realizados
treinamentos com profissionais do pronto-atendimento. No Hospital
Sírio-Libanês, também um dos mais sofisticados do País, houve
crescimento de 40% no número de pacientes atendidos em comparação ao
mesmo período do ano passado. O hospital reforçou a equipe de médicos,
enfermeiros e infectologistas e instalou 15 novas poltronas de
observação para acomodar mais pacientes.
Muitas razões explicam a gravidade da
situação. Algumas são pontuais. Houve a volta da circulação do tipo 1 do
vírus (são quatro). Muita gente não havia tido contato com ele e,
portanto, não havia desenvolvido anticorpos. Na região Sudeste,
particularmente em São Paulo, devido à crise hídrica muitos moradores
estocaram água sem o cuidado adequado, aumentando os criadouros.
Mas há origens crônicas por trás do
desastre da dengue. Em primeiro lugar, a política de prevenção, que
deveria ser executada de forma contínua pelas esferas federal, estadual e
municipal de governos, é falha. E na linha de frente do atendimento
ainda hoje encontra-se casos que não recebem o correto diagnóstico ou
não são identificados como de risco. Depois, há deficiências estruturais
nunca resolvidas que contribuem demais para a repetição das epidemias
no País. Entre elas, uma urbanização sem planejamento que ignora a
instalação de redes de saneamento básico, de um sistema eficiente de
coleta de lixo e que leva ao fim de áreas para o escoamento de água. “A
dengue é a doença que mais retrata a urbanização caótica em que
vivemos”, diz o infectologista Artur Timerman, autor do livro Dengue no
Brasil, Doença Urbana. Se nada for feito, o País continuará sujeito a
desastres como o atual. E pode piorar, com a ocorrência também de
epidemias do vírus Chikungunya, transmitido pelo mesmo Aedes aegypti. “É
uma questão de tempo para que a febre chikungunya se torne outra
epidemia”, diz Fernando Gatti Menezes, coordenador médico do Serviço de
Controle de Infecção Hospitalar do Albert Einstein.
Fotos: Paulo Whitaker/Reuters; Gabriel Chiarastelli, João Castellano/Ag. Istoé
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