Com 1 milhão de procedimentos por ano, prática é um problema de saúde pública ligado à criminalização da interrupção da gravidez
Terra
"Não existe prova da gravidez, a única coisa é o depoimento desta
médica dizendo que retirou uma quantidade grande de massa amorfa que ela
avalia como placenta do útero dessa mulher, que chegou com um
sangramento no hospital. Enquanto a mulher está hospitalizada essa
médica chama a Polícia Militar e, enquanto ela está internada, a PM vai
até a casa dela, sem mandato, e apreende um lençol sujo de sangue e um
balde. Não tinha feto, medicamento, caixa, nada. Apenas um lençol sujo
de sangue e um balde, em uma casa muito pobre. Com isso se instaura o
inquérito policial. Quando ela é liberada, é levada até uma delegacia e
existe uma confissão extrajudicial ao delegado. Essa mulher nunca é
ouvida em juízo para confirmar ou não essa confissão", resume a
defensora Juliana enquanto esperamos.
Marta aceitou assinar uma confissão para obter a suspensão
condicional do processo - prevista para penas mínimas de até 1 ano,
quando o réu é primário e não responde por outro processo criminal, e
que suspende o caso por um período de 2 a 4 anos, desde que o acusado
cumpra algumas condições como comparecer periodicamente em juízo para
atualizar endereço, justificar ocupação lícita, prestar serviços à
comunidade, entre outras - mas ela deixou de cumprir essas condições e o
processo seguiu o curso. Quando pergunto à defensora se ela acredita
que a mulher possa ir realmente a júri popular, ela diz que nunca viu
isso acontecer, mas que não é impossível. E explica que pretende mostrar
ao juiz que o processo é marcado por violações, como a falta de provas,
já que não há feto, o testemunho extraoficial porque ela não chegou a
ser ouvida em juízo, a denúncia feita por uma médica que quebrou o
sigilo de sua relação com a paciente, as buscas sem mandato, a falta de
uma perícia e de um exame de corpo de delito. "As mulheres costumam
assinar a confissão porque chegam muito fragilizadas e querem se livrar
daquilo o mais rápido possível. Os casos que chegam para nós são bem
parecidos: mulheres pobres, sozinhas, com filhos, sem antecedentes
criminais, que praticam o aborto inseguro em um momento de desespero e
que são denunciadas pelos profissionais que as atendem nos hospitais
públicos. Os companheiros não existem, nem aparecem seus nomes nestes
processos", diz a defensora. Como Marta está desaparecida, a audiência
aconteceria sem sua presença, mas foi adiada porque a médica, única
testemunha de acusação, estava de férias. Marta ali é um número, um
crime que será julgado em alguns meses.
Mas também é uma em 1 milhão de mulheres que, apesar da lei, da
religião e da sua opinião pessoal, buscam o aborto clandestino no Brasil
todos os anos. Com sorte, fugiria da pior estatística: a de que a
prática insegura mata uma mulher a cada dois dias no País e é a quinta
causa de morte materna.
Por ano, País tem 1 milhão de abortos clandestinos
"A gente não classifica um problema como sendo de saúde pública se
ele não tiver ao menos dois indicadores: primeiro, não pode ser algo que
aconteça de forma rara, tem de acontecer em quantidades que sirvam de
alerta. E precisa causar impacto para a saúde da população. Nós temos
esses dois critérios preenchidos na questão do aborto no Brasil, mas
essa é uma ótica nova", explica o ginecologista e obstetra representante
do Grupo de Estudos do Aborto (GEA) Jefferson Drezett, que há mais de
10 anos coordena um serviço de abortamento legal no País. "Só para
contextualizar, nós temos hoje, segundo a OMS (Organização Mundial da
Saúde), 20 milhões de abortos inseguros sendo praticados no mundo. Por
aborto inseguro, a Organização entende a interrupção da gravidez
praticada por um indivíduo sem prática, habilidade e conhecimentos
necessários ou em ambiente sem condições de higiene. O aborto inseguro
tem uma forte associação com a morte de mulheres - são quase 70 mil
todos os anos. Acontece que estas 70 mil não estão democraticamente
distribuídas pelo mundo; 95% dos abortos inseguros acontecem em países
em desenvolvimento, a maioria com leis restritivas. Nos países onde o
aborto não é crime como Holanda, Espanha e Alemanha, nós observamos uma
taxa muito baixa de mortalidade e uma queda no número de interrupções,
porque passa a existir uma política de planejamento reprodutivo
efetiva."
O Uruguai, que descriminalizou o aborto em outubro de 2012, também
tem experimentado quedas vertiginosas tanto no número de mortes maternas
quanto no número de abortos realizados. Segundo números apresentados
pelo governo, entre dezembro de 2012 e maio de 2013, não foi registrada
nenhuma morte materna por consequência de aborto e o número de
interrupções de gravidez passou de 33 mil por ano para 4 mil. Isso
porque, junto da descriminalização, o governo implementou políticas
públicas de educação sexual e reprodutiva, planejamento familiar e uso
de métodos anticoncepcionais, assim como serviços de atendimento
integral de saúde sexual e reprodutiva.
Jefferson coloca ainda que atualmente, no Brasil, acontecem cerca
de 1 milhão de abortos provocados e 250 mil internações para tratamento
de complicações pós abortamento por ano. "É o segundo procedimento mais
comum da ginecologia em internações. Por isso eu digo: o aborto pode ser
discutido sob outras óticas? Deve. Não existe consenso sobre este tema e
nunca existirá porque há um feto. Mas não há como negar que temos aí um
problema grave de saúde pública e que a lei proibitiva não tem impedido
que as mulheres abortem, mas tem se mostrado muito eficaz para matar
essa mulheres."
Mulher pobre tem risco multiplicado por mil no aborto inseguro
"O aborto não é um bem a ser alcançado. Nenhuma mulher acorda um
dia e diz 'vou engravidar daquele canalha que vai me abandonar, só para
ter o prazer de provocar um aborto'. As mulheres buscam no aborto
soluções para situações extremas. Mas é importante dizer que existe uma
diferença entre aborto clandestino e inseguro. O aborto clandestino não é
necessariamente inseguro. Ele pode ser feito em clínicas clandestinas,
porém com todas as condições de higiene, por médicos treinados, quando a
mulher tem dinheiro para pagar. A diferença entre as chances de morrer
em um aborto inseguro e apenas clandestino é de mil vezes. Então acaba
se criando uma desigualdade social, uma perversidade porque uma mulher
que tem um nível socioeconômico bom, as mulheres dos melhores bairros da
cidade de São Paulo, têm acesso a clínicas clandestinas, que não são
legalizadas, mas são seguras. Esse aborto pode custar mais de US$ 2 mil.
Enquanto um aborto inseguro pode custar R$ 50", diz o ginecologista.
Apesar das diferenças de tratamento, a Pesquisa Nacional de Aborto
(PNA), realizada em 2010 pela Anis - Instituto de Bioética, Direitos
Humanos e Gênero, mostra que, aos 40 anos, uma em cada cinco mulheres já
fez ao menos um aborto. E que o perfil é o da mulher comum em idade
reprodutiva. "Não existe surpresa nisso. São mulheres de diversas
classes sociais e religiões se arriscando porque a clandestinidade
oferece risco. As diferenças mais uma vez estão no fato de que, quanto
mais pobre essa mulher, mais riscos ela corre por causa dos métodos aos
quais tem acesso", explica a autora da pesquisa, Débora Diniz.
Esta leitura se confirma também no relatório feito pela
Universidade Estadual do Rio de Janeiro em parceria com a organização
internacional IPAS "Mulheres incriminadas por aborto no RJ: diagnóstico a
partir dos atores do sistema de justiça", que pesquisou casos de
criminalização de mulheres por aborto e entrevistou juízes,
desembargadores, promotores e atores do judiciário em geral e concluiu
que: "é muito mais comum que uma mulher seja incriminada por aborto
quando ela utiliza um método abortivo 'caseiro' (remédios obtidos no
mercado paralelo e outros métodos) do que quando ela recorre à clínica.
Estes casos são justamente aqueles nos quais o procedimento dá errado (a
mulher reage à medicação) e cai no sistema público de saúde; lá, um
servidor público (em alguns casos o médico do posto, em outros um
policial militar de plantão) a encaminha para a polícia. Este aspecto
demonstra claramente o recorte socioeconômico dessa modalidade de
criminalização: a maior parte das mulheres que utiliza os serviços
públicos de saúde é pobre, muitas das quais desempregadas ou com
ocupações de baixa remuneração".
O relatório compara ainda duas sentenças dadas a mulheres
diferentes: uma mulher de classe média, professora, mãe de dois filhos
que foi presa após realizar aborto em clínica clandestina e teve a
fiança arbitrada em R$ 300, e outra mulher sozinha, que trabalhava como
prostituta e mal sabia ler e escrever e teve a fiança arbitrada em R$ 3
mil. "Em geral, o perfil da mulher se repetia: pobre, pouco instruída,
moradora de periferia. Contudo, este não é necessariamente o perfil das
mulheres que fazem aborto, mas sim o perfil das mulheres que são presas
por terem feito aborto. Deste aspecto percebe-se uma grande diferença. O
sistema captura apenas algumas mulheres, as que necessitam se submeter à
saúde pública. Aquelas que encontram outras soluções privadas, não são
atingidas. Um claro retrato do recorte socioeconômico."
Jovem é acusada por aborto involuntário
Mariana* tinha 20 anos quando chegou ao pronto-atendimento de um
hospital particular de seu convênio médico em São Paulo com um aborto
espontâneo, e acabou sendo tratada como criminosa. "Estava com dois
meses de gestação, acordei uma noite com muita cólica e sangramento e
corri para o hospital. Apesar de não estar mais com o pai do bebê e da
minha família ter me dado a opção de fazer o aborto em uma clínica,
minha religião me fez desconsiderar essa hipótese", conta. "Assim que
cheguei ao hospital, sozinha, e comuniquei à recepcionista o que estava
acontecendo, senti a conversa mudar. Ela passou a me tratar com descaso
e, mesmo passando por uma hemorragia, tive de esperar muito mais tempo
do que os outros para ser atendida." Mariana lembra que, assim que
entrou no consultório, o médico perguntou se ela havia provocado o
aborto e, diante da negativa, continuou perguntando seguidas vezes.
"Antes da curetagem também perguntou muitas vezes se eu não havia mesmo
usado nenhuma droga naqueles dias. Ele disse que eu estava com um aborto
retido e que estava com uma grave infecção no útero. Fiquei vários dias
internada no andar da maternidade e, todas as vezes que saia no
corredor, de cadeira de rodas, todas as mães, enfermeiras e atendentes
me olhavam com ar de reprovação. Já estava triste por ter perdido o
bebê, e ainda tive de passar por isso mesmo sem ter provocado nada."
Apesar de o Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp) e o
Conselho Federal de Medicina (CFM) terem se colocado várias vezes
contra a denúncia da paciente que provoca o aborto por parte dos médicos
e do próprio Ministério da Saúde determinar em norma técnica que "toda
mulher em processo de abortamento, inseguro ou espontâneo, terá direito a
acolhimento e tratamento com dignidade no Sistema Único de Saúde
(SUS)", o que se vê nos hospitais públicos e de convênios é o que relata
Mariana, ou pior. "Diminuiu o número de mulheres que procuram o SUS por
complicações de aborto, e não é porque o número de abortamentos
diminuiu. É porque os profissionais recebem essa mulher com julgamento,
xingamentos, deixam-na sangrando por horas antes de internar e, muitas
vezes, fazem os procedimentos sem anestesia ,que é 'para aprender'", diz
a socióloga integrante da Frente contra a criminalização das mulheres e
pela legalização do aborto Dulce Xavier, que há muitos anos acompanha
estes casos. "Nós não temos uma política de planejamento reprodutivo no
Brasil, faltam preservativos nos postos de saúde, muitos serviços que
estão nas mãos de organizações sociais religiosas se negam a fazer
laqueadura e distribuir pílulas do dia seguinte - tanto que a presidente
precisou sancionar uma lei para garantir o direito às vítimas de
violência, o que já deveria ser feito desde a década de 1980 e, mesmo
assim, houve protestos - e quando essa mulher engravida sem querer e
provoca um aborto em ato de desespero, é descriminada por atendentes,
enfermeiras e médicos", lamenta. Drezett complementa: "Eu trabalhei mais
de 22 anos como chefe de plantão do centro obstétrico do hospital
Eleonora Mendes de Barros e sempre perguntava aos residentes qual era a
conduta que eles deveriam ter se uma mulher chegasse dizendo que havia
feito um aborto. Eles não tinham nenhuma informação sobre isso. Os
médicos não sabem o que fazer. Muitos acham que têm o dever de comunicar
a polícia. Não são todos, mas isso ainda existe. E tem os que fazem
procedimentos sem anestesia, que é para a mulher aprender a não abortar
mais. Porque senão ela vai ficar grávida toda hora para vir fazer um
aborto aqui. Esse raciocínio só não é risível porque é patético. Mas o
que tem por trás de tudo isso? A falta de clareza de lidar com o aborto
como questão de saúde pública."
Ginecologista atua em parceria com ONG
Cansado de presenciar cenas como estas, o ginecologista e obstetra
Oswaldo Queiroz começou, há 18 anos, um trabalho de humanização no
atendimento pós-aborto em parceria com a organização Ipas na Maternidade
Escola Assis Chateubriand (Meac) em Fortaleza. "Nós observamos que
muitas vezes a mulher é inimiga da mulher. A paciente vinha sangrando,
mas quando a atendente, a auxiliar descobria que era aborto, ela mesma
rejeitava essa coitada que ficava quatro, seis horas esperando por
atendimento. Em 18 anos trabalhando com isso, eu nunca conheci uma
mulher que quisesse abortar. Elas abortam porque estão desesperadas,
porque não sabem usar os métodos, não têm orientação, muitas vezes
quando o companheiro sabe que a mulher engravidou, o 'couro come', ela
apanha de verdade. Não tem uma que não chore quando tudo termina. Não é
uma situação agradável para elas", diz.
Desde então, meninas e mulheres que chegam na Maternidade Escola
com abortos malsucedidos são atendidas prontamente. "Ninguém pergunta se
o aborto foi provocado ou natural. Nós simplesmente prestamos o
atendimento através de uma equipe multidisciplinar que tem médico,
enfermeira, psicóloga e assistente social, fazemos a curetagem,
conversamos, marcamos uma revisão, exames, se elas quiserem podem voltar
para atendimento psicológico, e o mais importante é que essas mulheres e
meninas saem daqui com o método contraceptivo ajustado, explicado,
prescrito e com ele na mão", explica Oswaldo em uma sala pequena do
pronto-atendimento, em uma manhã tipicamente quente e agitada de seu
plantão.
Ele lembra que o Ipas começou esta parceria com outros hospitais do
SUS, mas os serviços foram acabando por resistência dos próprios
profissionais e gestores. A equipe de Oswaldo atende cerca de 100
mulheres por mês, entre abortos provocados, naturais e vítimas de
violência sexual. A idade média das pacientes fica entre 16 a 24 anos.
"Mulheres sem orientação, pobres, já com outros filhos, sozinhas, com
companheiros que somem quando elas dizem que estão grávidas.
Quantas pacientes chegam com infecções, precisam ser internadas,
chegam com útero perfurado, ficam estéreis, tudo isso cai na cabeça do
contribuinte. Isso poderia ser evitado se o Brasil tivesse uma política
de planejamento reprodutivo que funcionasse. No meu entender, em
qualquer posto de saúde deveria ter anticoncepcional, DIU e camisinha
disponíveis. Mas não tem. Eu mesmo só faço esse trabalho porque vou
pessoalmente pedir doações nos laboratórios. Mas você vê, eu preciso me
aposentar e não faço porque sei que o serviço vai acabar, ninguém quer
se envolver com isso", lamenta.
Oswaldo me sugere ir até o andar superior da maternidade, onde
algumas meninas se recuperam de curetagens feitas pela manhã e conversar
diretamente com elas. Seguindo por um largo corredor verde, entro em
uma enfermaria com seis camas, três de cada lado da parede, todas
ocupadas, cinco delas por meninas com seus bebês. Na última está
Beatriz*, 15 anos, uma das pacientes da equipe de Oswaldo. Me aproximo
com cuidado, falando baixo, intimidada pelos olhares reprovadores das
meninas mães (que aparentam ter no máximo 16 anos cada) sobre ela.
Beatriz também responde em um fio de voz, com um leve sorriso para
mostrar que está bem. Ela e o namorado, de 16 anos, moram juntos na casa
de sua mãe. Ele trabalha, ela tenta levar a escola adiante, o que é bem
difícil, já que tem que cuidar do filho de 1 ano. Conta que engravidou
sem querer, mesmo usando a pílula. Quando pergunto se provocou o aborto,
responde que sim com um aceno de cabeça, mas quando indago sobre o
método utilizado, responde que caiu no banheiro e bateu as costas. Foi
para o hospital sangrando. Passou pela curetagem e deveria voltar logo
para casa, com orientação e método anticoncepcional.
A ginecologista Zenilda Vieira Bruno, que coordena um serviço de
atendimento voltado especificamente a adolescentes da maternidade,
explica que 25% dos abortos provocados que chegam ao hospital são de
adolescentes entre 15 e 19 anos. "As meninas geralmente vão sozinhas ou
com as amigas. Nós oferecemos acompanhamento por um ano, cuidando da
parte de saúde, planejamento reprodutivo e psicológico. Elas dizem que
engravidaram de relações esporádicas, que não sabiam que teriam relação,
então não estavam tomando pílula ou não levaram camisinha. Os garotos
nunca se encarregam dessa parte, isso é responsabilidade delas", disse.
Zenilda conta que em uma pesquisa que realizaram com as
adolescentes constatou que, em cinco anos, as meninas que provocaram o
aborto e tornaram a engravidar (65%) tiveram o segundo filho. A pesquisa
mostra também que as meninas que abortaram eram mais velhas do que as
que levavam a gravidez a termo. "Elas diziam que o filho atrapalharia os
estudos, o trabalho. As mais novas, de 14, 15 anos com menos
escolaridade e perspectiva achavam natural ter o bebê naquela idade e
condições como sua mãe fez. Diziam que já cuidavam dos irmãos pequenos,
então poderiam criar os seus bebês. A maioria das adolescentes usa os
anticoncepcionais de maneira errada. Já ouvi meninas que tomavam uma
cartela intercalando com a irmã, com o namorado ou só na hora de ter
relações. Falta instrução, dar o método e explicar como usar. É muito
fácil criminalizar, mas não dar a contrapartida", diz.
A Agência Pública tentou entrevistar representantes do Ministério
da Saúde e da Secretaria de Políticas para Mulheres a respeito dos temas
abordados nesta reportagem, mas foi informada pelas assessorias de
imprensa de que não havia agenda disponível.
Nem quando amparado por lei
Segundo o artigo 128 do Código Penal, de 1940, o aborto é permitido
em caso de violência sexual, assim como em caso de risco de vida para a
mãe e, em decisão posterior do Supremo Tribunal Federal (STF), também
nos casos de anencefalia fetal. Mas só em 1989 foi implantado o primeiro
serviço para atender esses casos em São Paulo, que nos decorrentes de
estupro inclui, além do apoio psicológico e da interrupção da gravidez,
exames anti HIV e a contracepção de emergência. Segundo dados do
Ministério da Saúde, o País possui 65 hospitais qualificados na rede
pública para realizar a intervenção prevista em lei e realizou 1.626
interrupções gerais de gravidez em 2012.
Ainda assim, a resistência por parte de profissionais e da própria
sociedade fez necessária a criação de uma lei, com tudo que já era
determinado por norma, sancionada pela presidente Dilma em agosto, sob
fortes protestos dos religiosos do Senado. Além disso, dos serviços que
se dizem em funcionamento, nem todos realmente atendem todos os
procedimentos, como explica Drezett: "Foi feita uma pesquisa em 2006,
com as secretarias municipais de saúde de cerca de 800 municípios sobre
os serviços de atendimento à mulher vítima de violência. Quando se
pergunta quantos tinham o atendimento, quase 90% dizem que sim. Então a
pesquisa pergunta quantos destes serviços oferecem a concepção de
emergência, mais da metade disse que não. Aí vem a parte interessante:
quando se pergunta sobre o abortamento legal, 30% de cara já diz que não
faz; 6% se recusam a falar sobre o assunto. Dos que fazem, apenas 1,9%
tinham feito um aborto nos últimos dois anos. Quer dizer: é bonito dizer
que tem, mas prometer que eu vou cuidar de você e te abandonar no
momento em que você mais precisa de mim e está totalmente vulnerável é
muito cruel", lamenta.
Dulce Xavier lembra ainda que "quando o serviço foi instalado em
São Paulo em 1989 no Jabaquara, a equipe tinha a casa apedrejada,
recebia telefonemas ameaçadores, médicos eram perseguidos por serem
'aborteiros'. Houve no Ministério da Saúde um movimento para esclarecer,
mas quem atende tem receio de entrar nisso", ela diz.
Diante desta situação, alguns hospitais referência como o Pérola
Byington, em São Paulo, têm sua demanda aumentada por casos que chegam
de todo o Brasil, como explica a psicóloga Daniela Pedroso: "Nós
atendemos uma média de duas mulheres por semana, vítimas de violência
sexual. Chegam mulheres e meninas de outras cidades e até outros
Estados". Ela conta que desde a criação do serviço já foram feitos cerca
de 1,3 mil procedimentos e que a idade média das vítimas é de 20 a 24
anos. "Mas também chegam adolescentes e até crianças. A menina mais nova
que atendemos tinha 10 anos de idade."
Os casos de anencefalia, após uma dura batalha no judiciário que
resultou na descriminalização por decisão do STF, hoje já são encarados
com menor resistência por parte dos profissionais da saúde, mas ainda há
casos de anomalias fetais graves que precisam de decisão judicial, que
às vezes não saem, como explica a advogada Juliana Belloque. "O caso que
foi levado para o Supremo era de um anencéfalo, então foi concedido
para anencefalia. Mas é evidente que se há inviabilidade de vida
extrauterina não é crime. O exemplo era de um anencéfalo, mas os médicos
entendem isso restritivamente, existe um temor da classe médica de
sofrer processos por essa conduta, então eles têm uma tendência a se
resguardar. Quando é anencéfalo o médico faz. Qualquer outro tipo de
inviabilidade a mulher precisa de um alvará judicial, e a defensoria
atende toda semana essas mulheres buscando alvarás. Aqui na capital, a
maioria dos juízes concede, mas ainda existem os mais conservadores ou
religiosos que vão contra."
Estatuto do Nascituro expressa retrocesso
No dia 1º de agosto, a presidente Dilma Rousseff sancionou, sem
vetos, a lei que obriga os hospitais a prestarem atendimento integral e
multidisciplinar às vítimas de violência sexual, embora essa permissão
já constasse do Código Penal desde 1940. Houve protestos por parte dos
deputados da bancada religiosa, que se apressaram em apresentar vários
projetos para derrubar a nova lei, focando principalmente na
distribuição da pílula do dia seguinte, que, contra todas as evidências
médicas e científicas, é por eles considerado "uma espécie de aborto".
O relatório preliminar da reforma do Código Penal, que segue
lentamente, retira o aumento de permissivos para o aborto e mantém
apenas o que já era garantido por lei - apesar do Conselho Federal de
Medicina ter se pronunciado a favor da autonomia de decisão pela mulher
até a 12ª semana de gravidez. Após a derrota na Câmara, em 2008, do PL
1.135/91, que tentou descriminalizar o aborto, a maioria dos projetos
que tramitam hoje no Senado e na Câmara visa a aumentar as penas para o
aborto clandestino e restringir ainda mais o abortamento legal - como o
PLS 287/2012, de autoria da senadora Maria do Carmo Alves (DEM-SE), que
pede que o aborto em caso de anencefalia volte a ser crime.
No mesmo sentido, o projeto que ganhou mais destaque é o Estatuto
do Nascituro (Projeto de Lei 478/2007), que tem sido rechaçado por
médicos e militantes dos direitos humanos - e provocado protestos em
todo o País - por tentar estabelecer que o nascituro "é ser humano
concebido, mas ainda não nascido", prevendo o pagamento de um salário
mínimo aos filhos de estupro e o direito de ter o nome do "pai" na
certidão de nascimento.
Durante a campanha para a Presidência em 2010, diante de uma ameaça
de boicote por parte das igrejas evangélicas e católicas, Dilma teria
se comprometido a não apresentar nenhum projeto para a descriminalização
do aborto. Com as bancadas religiosas e autodenominadas "pró-vida", a
repressão tende a aumentar, explica Dulce Xavier: "Nós retrocedemos
muito nesta questão nos últimos anos. Se em 2008 nós discutíamos a
descriminalização destas mulheres, em 2013 estamos tomando as ruas para
pedir que não se aprove uma lei absurda como é o Estatuto do Nascituro, e
tudo por pura pressão religiosa sobre um Estado laico".
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