quinta-feira, 5 de março de 2020

Álcool em gel não evita infecção por novo coronavírus? É fake!

Em vídeo nas redes, suposto químico diz que esse produto chega a favorecer vírus e bactérias — e que o vinagre seria útil. Mas isso é mentira

Em um vídeo que corre pelo WhatsApp, o “químico autodidata” Jorge Gustavo alega que passar álcool em gel nas mãos não é eficaz na prevenção de infecções por vírus e bactérias. Pior: ele favoreceria a transmissão de doenças como a Covid-19, provocada pelo novo coronavírus.
Só que todas essas afirmações são falsas. “O que ele fala é simplesmente uma sucessão de besteiras, recheada por diversos erros técnicos e conceituais”, resume Álvaro José dos Santos Neto, farmacêutico doutor em Química Analítica e professor do Instituto de Química de São Carlos da Universidade de São Paulo (USP).
A disseminação do vídeo levou o Conselho Federal de Química (CFQ) a liberar uma nota esclarecendo que o álcool em gel 70% é, sim, eficiente para se proteger de vírus e bactérias, assim como lavar a mão com água e sabão.
Uma dica da SAÚDE: o próprio fato de o autor se denominar um “químico autodidata” levanta suspeitas. “O autor está sendo denunciado ao Ministério Público, uma vez que se intitula químico sem o ser de fato. Ele não tem nem formação nem registro em nenhum órgão competente”, comenta Rafael Barreto Almada, presidente do Conselho Regional de Química do Rio de Janeiro (RJ).
Essa profissão é regulamentada como a de engenheiros, enfermeiros, psicólogos e tantas outras. Portanto, exige formação e cadastro em uma entidade profissional, que estabelece regras para uma atuação ética.
As discrepâncias não param por aí. Como já virou tradição no É Verdade ou Fake News, vamos esclarecer uma a uma:

“O álcool não mata nada, não desinfeta nada, apenas esteriliza”

O álcool em gel, feito a partir do etanol, é um antisséptico — ou seja, tem a função de desinfetar a pele humana. Só que o termo desinfetante geralmente se refere a produtos utilizados em superfícies inanimadas (como uma mesa, por exemplo).
“Já a palavra ‘esterilizar’ se refere a um processo que destrói toda forma de vida microbiana, feito em equipamentos especializados e substâncias ainda mais potentes, com objetos como instrumentos cirúrgicos”, explica o microbiologista Jorge Sampaio, do Fleury Medicina e Saúde.
A ação desinfetante do álcool é bem estabelecida. “Ele atua na parede celular do agente infeccioso, desestruturando as proteínas ou lipídios que a revestem”, detalha Almada. Tal processo consegue eliminar mais de 99% dos agentes infecciosos. E o novo coronavírus (chamado de SARS-CoV-2 pelos experts) não é exceção.
“A literatura científica conta com vários estudos, inclusive revisões sistemáticas [que reúnem muitas pesquisas], atestando esse fato”, comenta Santos-Neto. Não à toa, a substância é usada há séculos como antisséptico em hospitais.

“Esse álcool gel tem mais de 70% de água e 20% de um espessante”

O 70% do rótulo (ou 70°, unidade de medida geralmente usada para a versão líquida) significa que existem 70 partes de álcool para 100 do produto final. Ou seja, em cada 100ml de formulação em gel, 70ml são puro álcool.
Os outros 30% do frasco são feitos de água e de um espessante. A combinação confere a consistência de gel, o que reduz o potencial incendiário do álcool e prolonga seu tempo de ação nas superfícies. Algumas marcas incluem ainda outros ingredientes para dar aroma e cor.
De qualquer jeito, formulações com mais de 50% de álcool já trazem algum efeito antisséptico discreto, embora o recomendado seja investir nas que contêm entre 70 e 85%. Produtos ainda mais concentrados eliminam os germes, porém são caros, agressivos à pele, altamente inflamáveis e com evaporação mais rápida.

“O agente gelatinoso usado como espessante pode carregar bactérias”

No vídeo, o “químico autodidata” Jorge Gustavo diz que um dos principais problemas reside no espessante. Essa substância serviria de veículo para bactérias, propagando doenças ao invés de preveni-las.
“Um gel puro, sem o devido cuidado, realmente pode servir como meio de cultura para alguns micro-organismos”, reconhece Santos-Neto. “Mas o álcool inibe esse processo”, arremata. Portanto, não há com o que se preocupar com o produto vendido nas farmácias.

“Usar vinagre é melhor”

O ácido acético, princípio ativo do vinagre, tem mesmo ação frente a bactérias. “Mas no vinagre doméstico essa concentração é baixa, e o produto pode causar irritação nas mãos”, explica Sampaio. “Fora isso, não há evidências de que o ácido acético seja eficaz contra vírus”, complementa Ana Gales, infectologista da Universidade Federal de São Paulo.
Segundo o autor do vídeo, o vinagre só perderia em popularidade por ser “extremamente barato”. Assim, a indústria não lucraria o suficiente com ele.
Acontece que dá para adotar estratégias para economizar no álcool gel. “Você pode comprar no atacado embalagens maiores, de um litro, e ir reabastecendo potinhos menores. Isso barateia o custo”, ensina Almada.

De onde vem essa história?

A origem pode estar em um estudo divulgado em 2019 pelo periódico mSphere, da Associação Americana de Microbiologia. Nele, pesquisadores japoneses questionam as recomendações atuais sobre o uso de soluções à base de álcool para eliminar o vírus influenza, causador da gripe.
Só que esse trabalho — que vai na contramão de vários outros — foi prontamente refutado pela comunidade científica. Pesquisadores publicaram uma resposta no Journal of Hospital Infection, apontando falhas no formato do estudo (como o fato de usarem uma quantidade ínfima de álcool em gel por poucos segundos) e considerando o achado irrelevante.
O grupo que desbancou esse estudo foi liderado pelo suíço Didier Pittet, um dos maiores especialistas do mundo em doenças infecciosas. Ele é diretor do Programa de Controle de Infecções e do Centro Colaborador de Segurança do Paciente da Organização Mundial de Saúde (OMS).
A ação do etanol a 70% contra os vírus da mesma família do novo coronavírus é demonstrada em experimentos há pelo menos 15 anos. E um novo artigo alemão, publicado no periódico Infection Prevention in Practice, sugere que o mesmo pode ser verdade para essa variante em circulação.
Hoje, o álcool em gel é recomendado para minimizar a disseminação do coronavírus e outros pela OMS, pelo Centro Europeu de Prevenção de Doenças, pelo Ministério da Saúde e por todas as entidades sérias envolvidas de alguma maneira no tema.

Dicas para usar o álcool em gel

Ele funciona melhor quando não há sujeiras visíveis na pele. “Os resíduos orgânicos prejudicam sua ação”, comenta Sampaio. Mais um motivo para lavar as mãos com frequência.
Também é importante não encostar os dedos no bocal, verificar a validade do produto e checar se há um químico responsável por sua fabricação — uma informação obrigatória no rótulo.
“Uma dica: quando o produto fica opaco, é sinal que perdeu seu princípio ativo. Aí não será mais eficaz”, completa Ana.

quarta-feira, 4 de março de 2020

Coronavírus pode ser mais grave em pessoas com doenças no coração

Um médico explica o porquê de o novo coronavírus causar sintomas mais sérios em pacientes com problemas cardiovasculares. Saiba como se prevenir

Pessoas com doenças cardiovasculares e idosos são mais propensos a desenvolver complicações da Covid-19, a doença provocada pelo novo coronavírus. Segundo dados do Colégio Americano de Cardiologia (ACC), em fevereiro de 2020, 40% dos hospitalizados com resultado positivo para essa infecção apresentavam alguma patologia cardiovascular ou cerebrovascular prévia. Além disso, 6,7% dos pacientes manifestaram arritmia e 7,2%, uma lesão no miocárdio.
De acordo com relatos, além de insuficiência respiratória, o desenvolvimento de insuficiência cardíaca contribuiu para a primeira morte registrada associada ao Covid-19. Já no Brasil, o primeiro caso confirmado, também no final de fevereiro, é de um homem de 61 anos, hipertenso e cardiopata.
Mas como explicar essa maior vulnerabilidade à nova epidemia? De maneia geral, indivíduos com doenças crônicas, como os acometidos por problemas no coração, apresentam deficiência no sistema imunológico. Uma vez infectados, eles correm um maior risco de exibir complicações sérias em relação a uma pessoa saudável.
No entanto, esse “privilégio” não é apenas para o coronavírus. Qualquer infecção terá mais chances de afetar gravemente pacientes com enfermidades que comprometem as defesas do corpo. Um exemplo é a mortalidade relacionada à gripe (provocada pelo vírus Influenza), que é maior em pessoas com histórico de doenças cardiovasculares.
Outro fato que precisamos destacar — mas cujo papel em relação ao novo coronavírus ainda não está claro — é de que vários pacientes com males cardiovasculares usam medicações que podem favorecer sangramentos. Dessa forma, contribuiriam para o agravamento da Covid-19.
O perfil incerto dessa doença ainda não permite traçar paralelos com outros tipos de infecções virais. Mas a miocardite — uma inflamação no músculo do coração às vezes desencadeada pela dengue —, teoricamente também poderia ser provocada pelo novo coronavírus. Obviamente, pesquisas na área são de muita importância para entender o potencial impacto cardiovascular desse vírus emergente.
O fato de o coronavírus ainda ser pouco conhecido, com pesquisas desenvolvidas em tempo real enquanto acompanhamos sua propagação pelo mundo, traz insegurança para afirmações categóricas dos pesquisadores. Mas a correlação desse agente infeccioso com o coração já não pode ser descartada.
Se a população, de maneira geral, precisa seguir as orientações das autoridades sanitárias para se precaver, os portadores de cardiopatias devem estar ainda mais atentos, redobrando cuidados para minimizar a probabilidade de contágio. Uma das orientações do ACC, inclusive, é que a triagem e o tratamento de pacientes com Covid-19 sejam priorizados na presença de diabetes e doenças cardiovasculares, renais, respiratórias e outras crônicas. Mas esse importante ponto de debate ainda não foi detalhado pelo Ministério da Saúde do Brasil.
Como já destaquei, os idosos também estão entre o “público-alvo” do vírus. E não apenas pela fragilidade imunológica ocasionada pela idade, como também pela série de doenças que acometem essa faixa etária — incluindo as complicações cardíacas.
Segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), os óbitos relacionados ao novo coronavírus estão mais presentes a partir dos 70 anos: 8% dos indivíduos com doenças crônicas entre 70 e 79 anos não resistiram à infecção. Dos 80 anos em diante, o número sobe para 14,8%. Na população em geral, a taxa fica em torno de 2%.
Aos pacientes com problemas cardíacos crônicos, vale redobrar os cuidados, comunicar ao médico sobre possíveis sintomas e, principalmente, investir em uma vida saudável, com boa alimentação e exercícios físicos. Uma coisa podemos afirmar: nenhum vírus se sente em casa em um corpo saudável.
*Luciano Drager é cardiologista, diretor científico da Socesp (Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo) para o biênio 2020-2021 e professor associado do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP).

segunda-feira, 2 de março de 2020

Remédio semanal contra diabetes previne doenças do coração

A boa notícia é que o medicamento foi capaz de reduzir o risco cardiovascular mesmo entre quem nunca sofreu com um problema do tipo antes

Não me canso de falar que o diabetes é uma importante e negligenciada causa de morte no Brasil e no mundo. Segundo dados do Boletim Epidemiológico do SUS de 2019, ele é a terceira causa de morte em mulheres e a quarta em homens no país. As doenças e complicações cardiovasculares, especialmente o infarto, ocupam o primeiro lugar dessa nefasta lista.
O ponto é que o diabetes também contribui para os problemas do coração. Algo que os brasileiros desconhecem, como mostrou uma pesquisa feita em 2019 pela área de Inteligência de Mercado do Grupo Abril. É notório que pessoas com diabetes possuem de duas a quatro vezes mais risco de sofrer um infarto ou um acidente vascular cerebral (AVC). Em resumo: além de ser uma das principais causas diretas de morte, a doença colabora para as condições que mais matam no Brasil.
Desde o final dos anos 2000, a FDA, órgão que é a Anvisa dos Estados Unidos, solicita que todo medicamento para tratar o diabetes tipo 2 se prove seguro do ponto de vista cardiovascular. Nos últimos anos, diversos estudos foram conduzidos e, felizmente, alguns remédios demonstraram não apenas segurança mas também benefícios para o coração.
Este é o mundo ideal para nós, endocrinologistas, pois temos à disposição medicações mais modernas que são capazes de baixar a glicose no sangue e, ao mesmo tempo, proteger o sistema cardiovascular do paciente.
No entanto, essa redução de risco cardíaco observada nas pesquisas vinha ocorrendo em um grupo específico: pessoas com diabetes tipo 2 que já tinham alguma sequela cardíaca de um problema anterior.
Aí veio a boa notícia com o estudo REWIND — e a FDA assinou embaixo. Esse trabalho avaliou a ocorrência de eventos cardiovasculares com um medicamento de uso subcutâneo semanal, a dulaglutida. E o remédio injetável foi capaz de reduzir desfechos negativos mesmo em pessoas com menor risco de panes cardíacas, aquelas que nunca tinham tido problemas prévios.
Qual a relevância desse achado na prática? Ora, a grande maioria dos pacientes com diabetes tipo 2 que frequenta os consultórios médicos não apresenta danos cardíacos. E a medicação é um exemplo de terapia que pode ser útil mesmo em fases iniciais do diabetes, quando o indivíduo está livre de sequelas e complicações. É uma prova de conceito de como podemos melhorar a prevenção para esses pacientes.