Entra em vigor nesta quinta-feira (23) a lei federal que estabelece um
prazo máximo de 60 dias para que pessoas com câncer iniciem o tratamento
pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
Nesse período, que conta a partir da confirmação do diagnóstico e da
inclusão dessas informações no prontuário médico, os pacientes devem
passar por cirurgia ou iniciar as sessões de químio ou radioterapia,
conforme a indicação de cada caso.
A lei foi sancionada pela presidente Dilma Rousseff em novembro do ano passado e tinha 180 dias para começar a valer.
A nova regra, porém, não vale para três casos: câncer de pele não
melanoma (a biópsia às vezes já é o tratamento), tumor de tireoide com
menor risco e pacientes sem indicação de cirurgia, radioterapia ou
quimioterapia. Em algumas dessas situações, porém, o uso de remédios
deve começar logo após a detecção da doença.
A previsão do Instituto Nacional do Câncer (Inca) é de que 518 mil
casos de câncer sejam diagnosticados em 2013, número que deve aumentar
com o envelhecimento da população e o aumento do tabagismo no sexo
feminino.
Em todo o país, 277 hospitais, centros e institutos estão habilitados a
realizar procedimentos oncológicos pela rede pública. Há unidades em
todos os estados, mas cinco deles – quatro no Norte e um no Nordeste –
têm apenas um local de tratamento. É o caso do Acre, Amapá, Amazonas,
Roraima e Piauí.
Segundo o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, será preciso ampliar os
serviços principalmente nessas duas regiões e no interior do país. Os
investimentos para isso têm sido feitos desde 2011, com a implantação de
80 novos centros de radioterapia, aquisição de equipamentos e parcerias
junto ao Ministério da Educação (MEC) para formar profissionais na área
de oncologia, o que leva de dois a três anos.
"[Isso] Vai exigir uma reorganização dos estados e municípios, dos
hospitais. (...) Outro grande desafio é termos mais médicos
especialistas em câncer", disse Padilha, em entrevista à Globo News.
De acordo com o secretário de Atenção à Saúde do ministério, Helvécio
Magalhães, os cinco estados com apenas uma unidade de atendimento ao
câncer pelo SUS apresentam um perfil populacional baixo, e o cálculo do
número de locais necessários é feito com base no total de habitantes.
Apesar disso, segundo Magalhães, esses "vazios assistenciais" serão
identificados e corrigidos.
Rosemar e Jaciara fazem tratamento de câncer
em Ribeirão Preto (SP) (Foto: Fernanda Testa/G1)
Para quem mora no Norte e no Nordeste, muitas vezes a saída é viajar
milhares de quilômetros em busca de atendimento especializado. Foi o
caso de duas
mulheres, uma de Rondônia e outra da Paraíba, que foram diagnosticadas
no Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto, no interior de São Paulo.
Rosemar Rodrigues Barbosa, de 25 anos, e Jaciara de Lima Cosmo, de 18,
fazem parte dos 6% dos atendimentos do hospital que incluem pessoas de
fora da região. As duas começaram o tratamento menos de 20 dias após o
diagnóstico da doença: uma tem um tumor na língua e a outra, um linfoma
(câncer no sistema linfático).
Na tentativa de ajudar no tratamento de pacientes com câncer, clínicas
privadas também poderão se credenciadar ao SUS. O objetivo do Ministério
da Saúde é aproveitar a estrutura que já existe e expandi-la em novos
turnos. Magalhães conta que 20 serviços privados de radioterapia estão
se credenciando à rede pública, e outros já 50 foram consultados pelo
governo.
"A data de hoje é um marco na disposição legal, mas nada acontece de um
dia para o outro. Apoiamos a iniciativa da lei porque vira uma força a
mais para o que já estávamos tratando de forma especial, que são as
doenças crônicas. Cada vez mais, conseguimos colocar o câncer no centro
da Política Nacional de Saúde", avalia.
Novo sistema
Desde o dia 16, municípios e estados brasileiros têm acesso ao Sistema
de Informação do Câncer (Siscan), um programa de computador que reunirá o
histórico de todos os pacientes oncológicos e do tratamento de cada um.
Desenhista Reginaldo da Silva Filho e a mulher,
Laudiceia, no Recife (Foto: Katherine Coutinho/G1)
A partir de agosto, as prefeituras e os governos estaduais serão
obrigados a cadastrar as informações nesse sistema – que estará
disponível ao público, via internet. Quem não cumprir o acordo terá
repasses suspensos por parte do governo federal.
"O Siscan vai permitir um monitoramento online em tempo real, mostrar
onde há mais dificuldades, a concentração dos tipos de câncer, para
elaborar forças-tarefa e agilizar procedimentos. Onde houver indícios de
descaso por parte de um gestor ou prestador, haverá punição
administrativa", explica o secretário.
Mais de mil pessoas foram treinadas a usar o novo sistema, com cursos a
distância e manuais, segundo Magalhães. Depois de agosto, será feito o
primeiro balanço, que após esse período deve ser mensal.
O Siscan ainda não chegou, porém, a instituições como o Hospital do Câncer de Pernambuco, onde o desenhista Reginaldo Carlos da Silva Filho, de 23 anos, luta contra um câncer nos ossos e nos pulmões.
Após os primeiros sintomas, há cinco anos, ele levou oito meses para
receber atendimento e mais de cinco meses para iniciar o tratamento.
Toda semana, Reginaldo viaja quase 70 km da cidade onde mora, Lagoa de
Itaenga, até o hospital em Recife. Ele tem recebido o apoio da mulher,
que conheceu em São Paulo, depois de nove meses de conversas a
distância, e com quem se casou em fevereiro.
Irmãs Clediléia e Clereni se apoiam uma na outra
para vencer o câncer (Foto: Anaísa Catucci/G1)
Demora no diagnóstico
Um dos problemas que a nova lei não contempla é a demora que o paciente enfrenta para obter o diagnóstico correto da doença. Esse foi o caso da vendedora Clediléia Maria Magalhães,
de 35 anos, que vive em de Campinas (SP) e levou oito meses para
receber o resultado de uma mamografia, que acabou identificando um
nódulo. Agora, ela vive uma fase de "angústia, com um peso nas costas", à
espera de novos exames para saber se se trata de um tumor maligno.
"O médico do posto disse que tem possibilidade de não ser câncer e que
há casos mais graves na minha frente. Mesmo com a orientação de um
oncologista, que me examinou e pediu exames pré-operatórios, ele
resolveu cancelar tudo, depois solicitou uma ultrassonografia e, se for
possível, irá encaminhar para um mastologista", disse.
Já a irmã mais velha de Clediléia, Clereni Maria Cândido, de 47 anos,
foi diagnosticada em 2007 com um tumor no ovário que se espalhou para
outros órgãos. Para detectar a doença, ela resolveu pagar as próprias
despesas – pelo menos, R$ 2,5 mil. Acabou passando por três hospitais,
quatro cirurgias e se aposentou por invalidez.
Para o oncologista Pedro Ricardo de Oliveira Fernandes, do Hospital
Municipal Dr. Mário Gatti, em Campinas, a nova regra não melhora os
problemas da rede pública.
"Diante da situação que enfrentamos hoje, é uma utopia acreditar que
vai ocorrer com tanta agilidade a mudança do cenário que temos nos
hospitais da cidade. Os exames ambulatoriais pelo SUS demoram muito e,
quando precisamos de exames sofisticados, existem pacientes que morrem
na fila por conta da precariedade", diz.
Dona de casa de Rondônia se queixa da demora
para ter diagnóstico (Foto: Ivanete Damasceno/G1)
Na opinião do secretário de Atenção à Saúde do ministério, Helvécio
Magalhães, os serviços do SUS devem facilitar o diagnóstico por meio de
exames como ultrassom, endoscopia e colonoscopia.
"Outro ponto é apostar na detecção precoce. Quanto mais cedo o médico,
na atenção básica, suspeitar de algo, maior pressão haverá para o
paciente fazer os exames e iniciar o tratamento", diz.
Esse é o ponto fraco da maioria dos casos. Segundo Rodrigo Almeida de
Souza, diretor do Hospital de Base Ary Pinheiro, em Rondônia, o
diagnóstico precoce depende do tempo que o paciente leva para procurar o
posto de saúde e ser encaminhado a um especialista.
Esse tempo prolongado pode ser determinante, como vive na pele a dona de casa Francisca Camurça, de 53 anos, que faz tratamento contra um câncer de mama em Porto Velho, após quase sete meses de espera pelo resultado.
Sobre o tratamento, Francisca não tem queixas. "Começou rápido, o que demorou foi detectar a doença", lamenta.
Costureira Conceição faz acompanhamento médico
em Jaú, no interior de SP (Foto: Alan Schneider/G1)
Apesar de essas situações de longa espera não parecerem exceção, há casos exemplares de atendimento de câncer no país. Os
moradores do interior paulista Conceição Aparecida de Matos e José
Gomes Ferreira, de 71 anos, se beneficiaram da rapidez dos serviços
oferecidos em Jaú.
Ela, que trabalha como costureira, foi diagnosticada com câncer de
intestino e ele, de próstata. Em um mês, Conceição passou por cirurgia e
agora faz acompanhamento. José segue o mesmo caminho, e admite que a
falta de informação e o preconceito para fazer exames preventivos
fizeram com que ele só procurasse um médico aos 60 anos de idade.
No entanto, o atendimento não deve apenas ser rápido, mas também preciso. No
caso da professora de Sobradinho (DF) Maria Aparecida Nere, de 53 anos,
uma avaliação equivocada poderia ter lhe custado a vida.
Antes de detectar tumor de mama, professora do DF
ouviu que 'câncer não dói' (Foto: Lucas Nanini/G1)
Após fazer um autoexame das mamas em 2011, ela suspeitou que estava com
câncer no seio esquerdo. Consultou-se com dois ginecologistas do SUS, e
eles disseram que era apenas gordura e que não deveria se preocupar,
pois "câncer não dói". Mas dois exames feitos no mesmo ano mostraram que
os especialistas estavam errados.
Hoje, após fazer cirurgia e sessões de químio e radioterapia, Maria
Aparecida espera pelo resultado de uma ressonância magnética – feita em
clínica particular – para saber se um caroço identificado no tórax e
outro na mama esquerda são novos tumores.
Ajuda influente
O aposentado gaúcho Adão Monteiro, de 66 anos, acredita que só
conseguiu o tratamento contra um câncer de próstata porque teve ajuda de
um vereador.
Ele esperou 11 meses para tratar a doença, diagnosticada em 2011, e
precisou passar por 37 sessões de radioterapia no Complexo Hospitalar da
Santa Casa, em Porto Alegre.
Aposentado teve ajuda de vereador para iniciar
sessões de radioterapia (Foto: Tanise Scherer/G1)
"Foi demorado. Se não conhecer ninguém influente, a pessoa morre. Eles
não dão bola. (...) É um descaso com o ser humano. Quando a pessoa
estiver morrendo, daí eles atendem", desabafa a mulher de Adão, Regiane
Alves Monteiro.
Outro entrave vivido por pacientes com câncer é a falta de acesso aos
medicamentos necessários ao tratamento, que às vezes não são encontrados
no SUS e precisam ser comprados. Adão também passou por isso, e decidiu
entrar na Justiça contra a Prefeitura de Canoas, na Região
Metropolitana de Porto Alegre, onde mora, para receber o remédio de que
precisava.
Atendimento
Dados do ministério mostram que, antes mesmo da nova lei, 78% dos casos
de câncer em estágio inicial já têm sido tratados em até 60 dias. Nos
casos de câncer em estágio avançado, esse índice sobe para 79%. As
informações mostram ainda que 95% das crianças e dos adolescentes
começam a ser tratados dentro desse prazo.
Apesar disso, ainda há uma grande desigualdade de tratamento em cidades
mais distantes dos grandes centros urbanos, disse Padilha.
Queremos reduzir as desigualdades em relação ao tratamento de câncer no país. Queremos que todos sejam tratados em 60 dias"
Alexandre Padilha,
ministro da Saúde
"Queremos reduzir as desigualdades em relação ao tratamento de câncer
no país. Queremos que todos sejam tratados em 60 dias", afirmou.
Se o prazo máximo estiver próximo do fim e o tratamento ainda não tiver
começado, os pacientes poderão procurar e cobrar a Secretaria Municipal
de Saúde, segundo Padilha.
"Sabemos que será um grande desafio para os municípios cumprirem o
prazo, mas é preciso que o cidadão busque informações nos equipamentos
de saúde. [...] O ministério também terá uma comissão de acompanhamento
de cumprimento dos prazos em todo o país", disse.
Segundo o secretário de Atenção à Saúde do ministério, Helvécio
Magalhães, o paciente ou os familiares também podem ligar para o Disque
Saúde (Ouvidoria Geral do SUS), no telefone 136.
Câncer no Brasil
O Inca prevê 518 mil novos casos de câncer em 2013. No ano passado,
foram mais de 500 mil diagnósticos de tumores, e o gasto público com
internações foi de R$ 806 milhões. Esse é o segundo problema de saúde
que mais mata no Brasil, atrás apenas de doenças cardiovasculares.
Entre as mulheres, o câncer que mais mata é o de mama – foram 12.705
casos entre 2010 e 2011, o que representa 15,3% das mortes femininas no
país. Já entre os homens, o câncer de traqueia, brônquios e pulmões
somou 13.677 casos no mesmo período, alcançando 14,2% dos óbitos.
O câncer não pode esperar, mas o tempo não é o principal fator
determinante, e sim a qualidade do tratamento, se ele é correto,
coerente"
Nise Yamaguchi,
oncologista
Para Padilha, a população brasileira também precisa melhorar os hábitos como forma de prevenção.
"É um problema de saúde pública que será cada vez mais presente por
conta do modelo de vida, da urbanização e do envelhecimento. [...] A
prevenção do câncer, antes de mais nada, é não fumar, ter hábitos
saudáveis, fazer exercícios", destacou.
'Decisão cautelosa e útil'
Na opinião da oncologista Nise Yamaguchi, diretora do Instituto Avanços
em Medicina e médica dos hospitais Sírio-Libanês e Albert Einstein, em
São Paulo, a decisão do governo é extremamente cautelosa, útil, e vem da
necessidade de agilizar o sistema.
"O câncer não pode esperar, mas o tempo não é o principal fator
determinante, e sim a qualidade do tratamento, se ele é correto,
coerente. É preciso saber o que se está fazendo, e isso não é imediato,
depende da resposta do patologista, de uma biópsia", explica.
Nise diz que, na maioria das situações, dois meses são um prazo
razoável. A exceção fica por conta de alguns tipos de leucemia, que
avançam mais rápido. Em relação às metástases – quando um tumor se
espalha para outros órgãos ou tecidos –, não é possível saber quando
elas vão ocorrer, razão pela qual não dá para afirmar se 60 dias são um
período seguro ou não.
De acordo com a especialista, na maioria dos países não existe esse tipo de lei.
"Neste Brasil continental, seria impossível dar conta de um prazo
menor, pois não adianta uma lei para não ser cumprida. Dentro de um ano é
que poderemos avaliar essa medida", diz a médica.
*Colaboraram G1 PE, DF, RO, RS, Ribeirão Preto e Franca, Bauru e Marília, e Campinas e Região