Cerca de 40% das famílias brasileiras
não autorizam doar órgãos, mas está em ação um grande esforço para
derrubar esse alto índice de recusa. Uma medida simples pode ajudar
muito: é só avisar aos mais próximos de que deseja ser doador
Cilene Pereira
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MÚLTIPLO Bruna teve de fazer quatro transplantes
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CHANCES Fabiana trocou de fígado duas vezes
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RECOMEÇO Yuri trocou o coração. Vai casar em novembro
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AMOR EM FAMÍLIA Edson recebeu da irmã um novo rim
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TROCA Luana passou por transplante de rim
Yuri Sousa Aurélio, 29 anos, Bruna Damasceno de Sousa, 30 anos,
Cilene Pereira, 52 anos, Edson Araki, 56 anos, Fabiana Pighini, 37 anos,
Luana Farias, 36 anos. Dar o nome e sobrenome das pessoas que aparecem
nas fotos desta reportagem é uma obrigação jornalística. Nesse caso, no
entanto, é acima de tudo a forma de evidenciar por meio das histórias
desses seis indivíduos a importância de apenas um gesto para que a vida
continue. De outro jeito, é verdade, mas ela continua. Todos foram
beneficiados por doações de órgãos imprescindíveis para que pudessem
continuar seus caminhos. Sem o ato de generosidade de alguém que não
conhecem — e que não os conhece — certamente não estariam aqui
estampando o sorriso que ilumina esses retratos, feitos pelo fotógrafo
Lincoln Chessa.
As fotos farão parte de uma exposição a ser montada em São Paulo como
parte de um pacote de iniciativas para estimular a doação de órgãos no
Brasil. A decisão de exibir as cicatrizes intenciona, também, quebrar o
conceito equivocado de que corpo bonito é corpo sem marcas. A ideia da
mostra partiu da Bruna, que passou por quatro transplantes (três de
fígado e um de rim), necessários por causa de complicações causadas por
uma doença metabólica, e do cantor Bruno Saike, ativista e idealizador
da ação #Juntos pela doação de órgãos. Na quinta-feira 27, comemora-se o
dia da Nacional de Incentivo à Doação de órgãos, e até lá serão
realizadas outras ações. Do movimento #Juntos, por exemplo, incluem-se o
lançamento nas plataformas digitais de uma coletânea com gravações de
artistas como Pitty, Ira! e He Saike e um ato na quarta-feira 26, na
Arena Corinthians, antes do início da semifinal entre Corinthians e
Flamengo pela Copa do Brasil. A Associação Brasileira de Transplantes de
Órgãos (ABTO) também preparou um calendário de eventos que terá seu
ponto alto no dia 27, com a iluminação em verde (cor da campanha) do
prédio da FIESP, na Avenida Paulista.
São ações mais do que necessárias. Entre janeiro e junho, quase 33
mil adultos aguardavam por um órgão, segundo a ABTO. Crianças somavam
706. A fila maior é para rins, seguida pela de fígado e de coração. Dos
5,4 mil adultos que ingressaram na lista no primeiro semestre, 728
morreram. Das 159 crianças, 7 perderam a vida antes que conseguissem uma
doação.
Falar em doação de órgãos é daqueles assuntos sobre os quais ninguém
quer conversar a respeito. Discutir o tema lembra a morte e, por isso
mesmo, é compreensível que cause desconforto. Mas é nessa mudança de
comportamento que residirá boa parte da virada de jogo para tirar muita
gente da espera e tornar o Brasil mais solidário. O número de pacientes
que aguardam por um transplante só é tão alto porque, basicamente,
faltam doadores. Capacidade técnica, em gente e em equipamentos, o País
possui. “Poderíamos aumentar o total de cirurgias porque os hospitais
têm estruturas muito bem estabelecidas”, afirma o cirurgião André
Ibrahim David, do Departamento do Transplante de Fígado da ABTO.
É verdade que há deficiências, como limitações nos hospitais para o
reconhecimento de potenciais doadores e sua notificação à central de
Transplantes. Mas é fato que times bem organizados — médicos,
enfermeiras, assistentes sociais, psicólogas, nutricionistas — trabalham
com maestria desde a captação de órgãos até a recuperação do
transplantado. Um belo exemplo é a equipe chefiada pela enfermeira
Vanessa Gonçalves, coordenadora de uma das quatro que atuam na capital
paulista na captação de órgãos. Ela comanda uma espécie de esquadrão da
vida acionado sempre que chega ao serviço a informação de um possível
doador nos hospitais. Momento difícil e decisivo
E é aí, com treinamento e sensibilidade, que começa um trabalho que,
horas depois, pode transformar a morte em vida novamente. Vanessa e seu
time têm a missão de explicar aos familiares que órgãos da pessoa que
acabam de perder podem ser doados se apresentarem condições para tal.
Antes de abordar a família, é preciso identificar a reação emocional dos
envolvidos e aproximar-se quando for possível. É um momento difícil,
mas decisivo. Ainda atordoados pela notícia do falecimento, os
familiares precisam entender conceitos como o de morte encefálica —
completa e irreversível parada das funções cerebrais — e decidir se
permitem a doação.Só quem pode autorizar são parentes em até segundo
grau, cônjuges ou companheiros. Em geral, quatro em cada dez famílias
não permitem a doação. Nos primeiros seis meses do ano, o índice médio
de recusa no País foi de 43%. No Mato Grosso, 90% disseram não à doação.
O mais impressionante é que 60% das negativas acontecem porque a
família simplesmente não sabe se a pessoa queria ser doadora. Na dúvida,
prefere manter o corpo preservado. Quando as pessoas sabem do desejo
que o indivíduo tinha de doar, a autorização é dada sem vacilação. É uma
forma de cumprir o último desejo de quem partiu. Às vezes, os
familiares intuem a opção por doar, como foi o caso de Sérgio Miwa
quando seu pai, Setsuo Miwa, morreu, há dois anos. “Ele foi uma pessoa
que ajudava os outros. Achei que gostaria de ter ajudado mais uma vez”,
conta Sérgio. A doação de Setsuo salvou três pessoas. ESQUADRÃO
da vida Vanessa (ao centro) lidera uma das quatro equipes da capital
paulista que faz a captação de órgãos (Crédito:Marco Ankosqui)
Por essa razão, um dos esforços é estimular que as pessoas digam,
principalmente aos familiares, que desejam ser doadores. “Informe a sua
família sobre seu desejo”, diz a enfermeira Vanessa. Em outra frente,
especialistas envolvidos na batalha pelo aumento dos transplantes lutam
pela criação de um estatuto do doador com medidas que possibilitem, por
exemplo, que as pessoas registrem seu posicionamento. “Também pensamos
em criar um aplicativo por meio do qual o usuário registre que é doador.
Pode servir de fonte de pesquisa para a família se solicitada a doar os
órgãos do parente falecido”, conta o cirurgião André Ibrahim.
Colocar-se à disposição para salvar vidas, portanto, é mais simples do
que parece. É só dizer “Sim, sou doador. Eu recebi um fígado. E dei o meu à outra pessoa
Eu sou a Cilene Pereira que assina a reportagem sobre a importância
de doar órgãos e a Cilene Pereira que aparece no início do texto, na
lista dos transplantados. A foto é minha e faz parte da exposição
programada para acontecer na Arena Corinthians, na quarta-feira 26,
antes da semifinal entre Corinthians e Flamengo pela Copa do Brasil. Em
31 anos de jornalismo, jamais imaginei que um dia eu seria personagem da
minha própria matéria. Personagem, no jargão jornalístico, é a pessoa
que serve para ilustrar uma história. Mas aqui estou eu contando minha
trajetória publicamente para, quem sabe, contribuir para que o número de
doações cresça no Brasil, ajudando mais gente que, como eu, dependia de
um transplante para que a vida seguisse como deve seguir.
Sou portadora de Polineuropatia Amiloidótica Familiar (PAF), doença
neurodegenerativa rara de origem genética. A mutação provoca uma
alteração estrutural na proteína transtirretina, produzida
principalmente no fígado, tornando-a instável. O resultado é que ela
acaba se depositando sobre diferentes tecidos, provocando danos
sistêmicos que vão de prejuízos cardíacos à perda progressiva de
movimentos, à atrofia muscular e a outra série de efeitos que fazem a
vida do paciente minguar aos poucos. Sem tratamento, pode levar à morte
em dez anos.
Não foi um diagnóstico fácil, como não são fáceis os diagnósticos de
doenças raras. Contei com a sorte de ter sido atendida, de pronto,
quando os sintomas apenas se insinuavam, pelo cardiologista Bruno Bueno,
do Hospital Samaritano, em São Paulo. Competente, atencioso e dono de
um raciocínio diagnóstico impressionante – assim como de um bom humor
que tornou tudo mais leve -, Bruno persistiu na busca de respostas e me
guiou durante um ano e oito meses até que descobríssemos o que eu tinha.
O transplante de fígado foi a primeira forma encontrada pela medicina
para impedir ou retardar a progressão da enfermidade. Hoje, há
medicações que atuam no mesmo sentido, uma delas disponível no País.
Cheguei a experimentá-la, mas aparentemente não houve benefício para o
meu caso. Decidimos pelo transplante como forma de barrar a evolução da
doença que roubaria minha autonomia. Sou jornalista, mãe de três filhos,
inquieta, inconformada com platitudes, curiosa e apaixonada por
conhecer pessoas e lugares, como mandam minha profissão e minha
personalidade. Não andar e depender de alguém para cuidar de mim a essa
altura da minha vida me apavorava.
De repente, me vi na condição que descrevera em reportagens sobre
gente que esperava na fila do transplante. Mas desta vez era o meu nome
que estava no registro da Central de Transplantes e era eu que entrava
periodicamente no sistema para saber se minha vez estava próxima. A
espera durou cerca de três meses. Recebi o telefonema de que haviam
achado um doador no início da manhã do dia 14 de setembro do ano
passado. Doze horas depois me deitava na mesa cirúrgica do Hospital
Samaritano para fazer o transplante, conduzido com excelência pela
equipe do cirurgião André Ibrahim David.
Por uma peculiaridade da minha doença, meu fígado não servia para
mim, mas servia para outro paciente. Por isso, passei pelo o que os
médicos chamam de transplante dominó, uma modalidade possível somente
nos casos de PAF e de outras formas de doenças metabólicas genéticas do
fígado. Na mesma noite em que recebi um fígado novo, doei o meu para
outro paciente, que aguardava por uma nova chance de vida no Hospital
das Clínicas de São Paulo (HC/SP), localizado a apenas alguns
quilômetros de distância do centro cirúrgico onde eu estava. Os
cirurgiões retiraram o meu fígado e o entregaram para os colegas do
HC/SP. Naquela noite, duas pessoas ganharam uma chance de seguir com a
vida. Eu, graças à doação que havia recebido. O paciente do HC/SP,
graças ao fígado que eu havia doado.
Nunca na minha vida havia pensado que um dia eu precisaria de um
transplante – exceto pacientes com doenças que se manifestam cedo,
ninguém em sã consciência pensa que um dia estará nessa situação. Por
isso, em meio à agitação estranha aos nossos olhos de pacientes dentro
da sala de cirurgia e à ansiedade com o que estava por vir, fiz uma
pausa por alguns segundos. Fechei meus olhos e agradeci do fundo do
coração à pessoa de quem eu receberia o fígado. Como é de praxe, não sei
quem foi meu doador. E também não sei quem recebeu o meu fígado. Na
verdade, isso não importa. O que importa é que por causa de uma doação
de órgão eu sigo com minha vida, com as alegrias, os fracassos, os
encantamentos, as angústias e as esperanças que fazem dela algo tão
fascinante e desafiador. E torço muito para que a pessoa que recebeu meu
fígado esteja, como eu, feliz e pronta para a vida que há para ser
vivida.
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