Medicina é vocação. Enfrentar a tensão da
responsabilidade pela vida do doente não é para qualquer um. Desde o
juramento de Hipócrates que os médicos colocam, ao menos em tese, a vida
do paciente acima de seus próprios interesses pessoais muitas vezes.
Muitos se formam na difícil faculdade
sonhando com a prática, acreditando que farão diferença na vida de muita
gente, podendo salvar aqueles que, sem seu auxílio, encontrariam
certamente a morte. É uma profissão diferenciada, bela e valiosa.

Foi o caso com o carioca Marcio Maranhão,
cirurgião torácico que ingressou na atividade medicinal repleto de
sonhos, e foi sendo expelido ao longo dos anos pelo próprio sistema, por
não lhe oferecer o mínimo de condição para trabalhar com dignidade.
Sua trajetória é relatada no livro Sob pressão: A rotina de guerra de um médico brasileiro, lançado este mês pela editora Foz. Mostra bem como é absurdo o quadro do Sistema Universal de Saúde (SUS) em nosso país.
É leitura que nos deixa indignados, como o
próprio médico ficou a ponto de abandonar sua tão sonhada posição de
médico do estado e ter de desabafar em depoimentos à jornalista Karla
Monteiro. Seu livro é mais uma tentativa de ajudar os doentes
brasileiros, dessa vez denunciando a incompetência e a má administração
que levaram o sistema ao atual cenário de ruínas.
Imbuído de romantismo ao se formar,
Marcio foi logo tendo que se deparar com a realidade trágica do Souza
Aguiar, imerso no caos das filas infindáveis à espera de um leito ou
tratamento. A rotina do médico era completamente surreal, mas não
incomum para a profissão. Chegava a fazer 14 ou 15 plantões por mês,
correndo entre três hospitais diferentes sem dormir.
Fosse “apenas” a correria, as noites não
dormidas ou o queijo-quente como única refeição, tudo bem. Mas tudo isso
era nada se comparado ao que ele tinha de enfrentar nos hospitais, em
termos de precariedade das instalações e falta do básico para o
exercício de suas funções.
Marcio descreve a verdadeira tragédia que
o país vive na área de Saúde. “O Brasil faz política na saúde em
oposição à política de saúde. Faz-se política de governo em vez de uma
política de Estado”, diz. Sua experiência atesta o completo descaso do
estado, das diferentes esferas de governo. Falta uma política integrada,
planejamento, cobrança, responsabilidade, falta tudo!
Os médicos, em meio a esse caos, ficam
enxugando gelo, correndo entre os corredores fétidos, lotados, tendo que
improvisar o tempo todo, apelar às gambiarras, ao jeitinho, correr
riscos de imprudência para tentar salvar a vida daquelas pessoas
desesperadas, entre a vida e a morte. Tudo, absolutamente tudo na saúde
pública era repulsivo para o jovem cirurgião.
O livro conta casos pitorescos, que
seriam até engraçados com o devido afastamento, visto como em um filme
de comédia pastelão. Mas estamos falando da vida dos brasileiros,
morrendo por falta de atendimento, por falta do básico, de um dreno, de
um fio para sutura, de sangue para transfusão. É muito sofrimento
causado pela negligência estatal.
E como esses bravos médicos são
recompensados por seu esforço homérico para tentar mitigar o caos do
sistema? Em um dos hospitais públicos em que Marcio trabalhou por oito
anos, realizando complexas cirurgias, seu salário líquido era de apenas
R$ 1.372,67. No período todo, teve aumento de menos de R$ 100. Como
cobrar desses médicos comprometimento e determinação?
A grande preocupação dos burocratas da
medicina é com as horas semanais, que devem ser cumpridas. O importante é
bater ponto. É tudo feito para se resguardar politicamente ou
judicialmente, não para atender aos doentes. O doente não pertence a
ninguém nessa loucura toda, não tem “dono”, responsável. O médico também
costuma ficar solto no sistema, apenas cumprindo suas horas e muitas
vezes se esquivando com base na justificativa – legítima – de que
faltaram condições para uma cirurgia qualquer.
O SAMU foi uma das experiências mais
bizarras do autor, que chegou a percorrer em um dia 250 quilômetros com
um senhor à beira da morte em busca de um leito em hospital público.
Enfrentar traficantes nas perigosas favelas cariocas sem um pingo de
infraestrutura é realmente análogo ao que fazem os Médicos Sem
Fronteiras em clima de guerras. O salário para um plantão de 24 horas no
SAMU? R$ 500.
Falta um plano de carreira estatal para
os médicos, que ficam largados nessa confusão toda, e depois acabam
usados como bodes expiatórios pelos governantes para se isentarem de
qualquer culpa pela caótica situação do SUS. Como ponta final entre o
sistema e o paciente, é o médico que leva a culpa. A propaganda negativa
ajuda a quebrar a confiança da sociedade na classe médica, o que é
perigoso.
Não há solução fácil. Mas sem dúvida ela
não passa pelo programa sensacionalista Mais Médicos, ou pelo discurso
populista de que basta jogar mais recursos públicos no setor. Há muita
corrupção, desvio, falta de accountability, falhas estruturais.
Marcio Maranhão jogou a toalha. Não aguentou. Foi mais um soldado que
abandonou a batalha após dedicar seu suor a uma luta perdida.
Ainda deposita esperança no SUS, um
modelo igualitário e “socialista” de saúde. Alguns países desenvolvidos,
é verdade, conseguem oferecer uma saúde pública de qualidade, ainda que
a um custo elevado. Sou mais cético: a ideia de que caberá ao estado
cuidar da saúde de todos de uma forma digna parece um tanto utópica, ao
ignorar o mecanismo de incentivos inadequado.
Mas não resta dúvida de que o estado
poderia, ao menos no básico, fornecer condições bem mais razoáveis para
que esses médicos, funcionários de carreira do estado, pudessem tratar
dos pacientes mais pobres e salvar milhares de vidas que hoje se perdem
por total negligência.
Rodrigo Constantino
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