Na era
digital, a possibilidade de coletar, organizar e acessar um mundo de
informações favorece o trabalho dos médicos - e quem mais ganha são os
pacientes
Por
Raquel Beer
Schlesinger, da Mendelics: sequenciamento
genético por 10 000 reais. Antes, custava mais que o dobro (Lailson
Santos/Dados que curam)
“Declare o passado, diagnostique o presente e preveja o
futuro”, dizia o fisiologista grego Hipócrates, apelidado de o pai da
medicina, no século V a.C. Com essa elegante definição do trabalho
médico, o pensador indicava a relevância do acúmulo de conhecimento
prévio para guiar os tratamentos. Ao receber um paciente, o profissional
de saúde precisa, antes de tudo, relacionar os sintomas relatados a
outros quadros similares para realizar o exame, prescrever medicamentos e
prever qual será a eficiência da terapia recomendada. Até muito
recentemente, porém, antes do desenvolvimento de exames de laboratório
complexos e conclusivos, os doutores tinham de confiar apenas na memória
de um enfermo para desenhar um caminho de cura.
Deu-se agora uma espetacular guinada com o avanço da era digital, da
inteligência alimentada pelos algoritmos e do big data — termo que
descreve a possibilidade de organizar e consultar, de forma automática,
montantes colossais de dados em qualquer área do conhecimento humano.
No século XXI, médicos dependem cada vez menos do próprio
conhecimento, ou do que relatam os pacientes, para “declarar o passado,
diagnosticar o presente e prever o futuro”. Bastam alguns cliques no
computador para ter acesso a quase toda informação. Está acabando o
tempo em que clínicos de pronto-socorro podem se contentar em dizer aos
doentes, genericamente: “É uma virose”.
O impacto das novas tecnologias de big data no trabalho médico pode
ser medido em números. Ao longo da vida, um indivíduo gera o equivalente
a 200 terabytes de informações ligadas à sua saúde. Entretanto, em
torno de 90% desses dados se perdem porque não são armazenados, ainda.
Estima-se que, se os médicos tivessem acesso ao histórico de todos os
pacientes do mundo, seria possível reduzir em 20% a mortalidade global. A
precisão nos diagnósticos possibilitaria ainda uma economia de 300
bilhões de dólares ao ano apenas para o sistema de saúde dos Estados
Unidos. Esses benefícios levam a uma adoção cada vez mais ampla dessa
inovação: a cada ano, aumenta em 20% a digitalização de informações
médicas no planeta. Portanto, não está tão longe um futuro no qual não
mais 90%, quiçá nem 1%, desse conteúdo será perdido.

Dada a imensidão de estatísticas que podem ser colhidas, como
organizá-las e compreendê-las? A resposta está nos softwares de big
data. Eles são resultado direto do exponencial barateamento da
capacidade de armazenamento dos computadores, acompanhado pela
multiplicação do processamento dessas máquinas e pelo avanço da
tecnologia de sequenciamento genético. Tudo somado, temos a
interpretação automática, mesmo por aparelhos comerciais como
smartphones e tablets, de todo o conteúdo compilado pelos
profissionais. E haja dados: um único hospital pode acumular 665
terabytes deles ao ano, o equivalente a três vezes todo o catálogo da
Biblioteca do Congresso americano, a maior do mundo.
Um dos mais novos e promissores frutos desse caldo tecnológico é o
programa Watson Health, próprio para hospitais. Lançado pela IBM em
abril de 2015, ele é um refinado produto de inteligência artificial,
alimentado pelos potentes servidores da empresa americana, cuja missão é
agrupar grande parte dos dados medicinais do planeta para facilitar o
trabalho dos médicos. No mês passado, a IBM começou a negociar a
instalação do programa em clínicas brasileiras. Como ele vai funcionar? O
Watson é alimentado de informações provenientes de laboratórios,
hospitais e até mesmo iPhones. Em uma parceria com a Apple, a IBM fez
com que seu software tivesse acesso a informações geradas a partir de
aplicativos de celular e tablet que medem o estado de saúde de seus
usuários. Que tipo de material é coletado? Quantos passos as pessoas dão
em um dia, se dormem bem, em que ritmo bate o coração, e muito mais.
“Há uns cinco anos começamos a notar quanto essa abordagem da
computação, chamada de cognitiva, se tornará chave para a evolução do
cuidado médico”, disse a VEJA o oncologista americano Mark Kris, um dos
responsáveis pelo projeto do Watson Health. “A ferramenta que criamos é
fundamental para a construção de tratamentos individuais, específicos e
sob medida, de cada paciente, em qualquer lugar. É o futuro da medicina,
começando hoje.”
No consultório, o Watson Health acaba por operar como um Google dos
médicos. A tecnologia apresenta subdivisões de acordo com a
especialidade do campo da saúde. Uma das mais consultadas é o Watson
Oncology, focado na oncologia e desenvolvido em parceria com o
prestigiado hospital americano Memorial Sloan Kettering Cancer Center.
Durante os últimos cinco anos, médicos abasteceram o Watson — e
continuam a fazê-lo — com histórias de casos atuais e antigos de
câncer, ensinando assim a inteligência artificial a abordar cada
variação da moléstia. Hoje, oncologistas com acesso ao programa
consultam esse banco de dados antes de atender um paciente. Nele, é
possível inserir o quadro clínico geral de um paciente. A partir daí, a
inteligência artificial calcula quais são os métodos que se provaram
mais eficientes para o tratamento da enfermidade em questão.
Antes da chegada do Watson Health ao país, hospitais brasileiros já
vinham instalando tecnologias similares. Há quatro anos o paulistano
Sírio-Libanês investe na criação do que denominou de Biobanco, uma
central de servidores com dados de amostras de sangue e tecido e com
informações sobre tumores de pacientes. A tecnologia, em teste, ainda é
acessada apenas por uma área de pesquisas, na qual quarenta pacientes
têm servido de voluntários. “Mas estamos felizes com os resultados e
logo implementaremos esse recurso em todo o nosso complexo”, diz o
bioquímico Luiz Fernando Reis, responsável pela iniciativa.
Outro exemplo do bom uso do big data na área médica vem do
laboratório paulistano Mendelics. Fundada há quatro anos pelo
neurologista David Schlesinger, a empresa é especializada em
sequenciamento genético, técnica que contribuiu para o desenvolvimento
desta era do big data. Por menos de 10 000 reais, em média (há cinco
anos, esse valor era mais que o dobro), em apenas um mês de trabalho, o
Mendelics analisa o DNA de uma pessoa e identifica as alterações nos
genes que podem predispor a algum mal, como a doença de Parkinson, por
exemplo.
As vantagens dessas inovações são evidentes. É preciso, porém,
atentar também para alguns perigos da novidade. Um deles é a exposição
da privacidade das pessoas. Afinal, como saber se um paciente concorda
que as informações de sua doença sejam coletadas e jogadas em um banco
de dados, expondo sua condição a desconhecidos? Ilustra bem esse nó a
existência de uma rede social para profissionais de saúde (o cadastro é
gratuito, mas apenas acessível a quem é da área), a Figure 1. Ela
funciona como um Instagram com imagens de doenças e adoecidos. Em
teoria, é preciso preservar a identidade do paciente ao compartilhar uma
imagem — conteúdo que pode ser útil, por exemplo, para um médico pedir
orientações a um colega, especialista em uma enfermidade, de um hospital
do outro lado do planeta. Entretanto, como tudo na internet, há brechas
que acabam por expor as pessoas.
Outro dilema, este talvez ainda mais delicado, é a transformação de
qualquer paciente em um especialista, dada a facilidade de coletar
dados. No Google, 20% das buscas realizadas são relacionadas a doenças —
e muita bobagem, como tratamentos sem fundamentos científicos, aparece
quando se faz esse tipo de pesquisa. Com a intenção de reduzir danos, o
Google se uniu a hospitais como o paulistano Albert Einstein para sempre
apresentar informações corretas quando um usuário faz buscas no site.
Desde março, quando alguém procura por uma enfermidade, como a zika,
aparece, ao lado dos resultados usuais (normalmente, pouco confiáveis),
uma tabela feita por especialistas que descreve a evolução da doença e
indica onde procurar ajuda. Como é habitual no mundo da inovação, o
problema que surge com a tecnologia acabou sendo resolvido, também, pela
própria tecnologia. Há, sim, questões a ser discutidas quando se trata
de coleta extensiva de informações individuais. Porém, separar o joio do
trigo é algo que já começa a ser feito a partir da análise de dados. O
“achismo” morreu.