sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Sangue que salva

O Brasil se destaca nos transplantes de medula óssea e bancos públicos de cordão umbilical respondem por quase metade dos procedimentos com doadores que não são parentes

Solange Azevedo

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ALÍVIO
Os Pepi quase perderam o pequeno Gustavo. Mas o sangue de
um cordão umbilical colhido numa maternidade americana o salvou

Vanguarda no tratamento de enfermidades como Aids e doença de Chagas, o Brasil começa a se destacar nos transplantes de medula óssea. Só perde para Estados Unidos e Alemanha em número de possíveis doadores cadastrados e, nos últimos anos, vem investindo também na criação de bancos de sangue de cordão umbilical. “Somos uma das principais redes públicas de sangue do mundo”, afirma Luis Fernando Bouzas, diretor do Centro de Transplantes de Medula Óssea do Instituto Nacional de Câncer (Inca) e coordenador da BrasilCord – que reúne os bancos públicos nacionais – e do Registro Nacional de Doadores de Medula Óssea (Redome). “Temos 11 mil bolsas congeladas. Logo que estivermos com a capacidade máxima instalada, esperamos armazenar de dez mil a 12 mil unidades por ano.” A expansão desses bancos reúne hospitais de ponta, como Albert Einstein e Sírio-Libanês, e tem sido fundamental para salvar cada vez mais vidas. O sangue do cordão é uma fonte de células-tronco para transplante de medula – procedimento indicado para cerca de 70 doenças.

Dos transplantes com doadores não aparentados feitos no Brasil, 46% foram realizados graças a esses bancos públicos. Além de a captação de sangue estar aumentando, o País se uniu a uma rede internacional. O que permite que brasileiros recebam material biológico colhido no Exterior e vice-versa. Há sete bancos públicos funcionando no Brasil, cinco em fase final de validação, quatro em processo de autorização e um em construção. Como cinco desses sete iniciaram as atividades nos últimos dois anos, espera-se que as coletas avancem mais a partir de agora. O banco do Sírio-Libanês, por exemplo, foi inaugurado em 2010, numa parceria com o Amparo Maternal, a maior maternidade pública do País. O primeiro transplante desse tipo, com doador não aparentado, foi feito em 1992 nos Estados Unidos. “Precisamos de 100 mil a 150 mil bolsas para atender à diversidade étnica da população”, diz Vanderson Rocha, coordenador médico da Unidade de Transplante de Medula Óssea do Sírio. “Por isso, é importante que outros bancos públicos, como os do Norte e do Nordeste, funcionem o quanto antes.”

Uma das vantagens dos bancos públicos é que, além de não ter custo para os pacientes, a compatibilidade mínima exigida é de 70%. No caso de doador adulto, não. Tem de ser próxima de 100%. Isso porque as células do cordão são mais imaturas e menos reativas do que as extraídas diretamente da medula. Esse “menor nível” de exigência abre novas possibilidades. Três de cada quatro pacientes que precisam de transplante, como o paulista Gustavo Pepi, não têm doadores na família. Gustavo foi um dos mais de 480 beneficiados com transplante de células-tronco provenientes de sangue de cordão desde 2004 no Brasil. Certo dia, de forma direta e doída, o menino quis saber se a doença que o maltratava havia meses – uma leucemia mieloide aguda – seria capaz de lhe tirar a vida: “Mãe, eu vou morrer?”, perguntou. “Eu respondi que lutaria junto com ele”, lembra a auxiliar de enfermagem Joseane Gomes da Silva Pepi, 32 anos.

Os sintomas da doença se manifestaram de repente. Em junho de 2009, quatro meses antes de completar 7 anos, Gustavo começou a ter febre alta e vomitar. Em dez dias, passou por cinco pediatras. A saúde de Gustavo andava tão comprometida que ele não conseguia falar. Não saía da cama. Estava com o baço aumentado. Na primeira internação, ficou três meses no hospital. Fez quimioterapia e radioterapia. As células doentes pareciam ter sido eliminadas. Mas, em menos de seis meses, a leucemia estava de volta. A boa notícia chegou em 2010. O sangue de um cordão colhido numa maternidade americana se mostrou mais de 90% compatível e, em fevereiro deste ano, Gustavo foi submetido ao transplante no hospital do Grupo de Apoio ao Adolescente e à Criança com Câncer, em São Paulo.

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ESPERANÇA
Os filhos de Natália (foto) nasceram com uma síndrome rara. Riquelme, 4 anos,
já fez o transplante. Miguel, 1 ano e 3 meses, deve ser submetido em breve

Em oito de cada dez transplantes com sangue de cordão feitos no Brasil, o material foi colhido no Exterior. A expectativa, porém, é de que a dependência internacional seja reduzida gradativamente. “Com o crescimento da Rede BrasilCord, esse número vem diminuindo. No último ano, já fornecemos material para 32% dos transplantes”, afirma Bouzas, do Inca. Ele lembra que os bancos públicos funcionam como um complemento do Redome. E que uma das limitações dos transplantes com sangue de cordão é que o paciente não pode pesar muito mais que 50 kg. Caso contrário, é preciso combinar material biológico de duas bolsas e isso dificulta o sucesso do procedimento.

Outra vantagem no uso do cordão é que o material está disponível de imediato. A baiana Karine Rocha Dias, 35 anos, ficou aliviada por não ter de esperar muito para ver o caçula transplantado. Ela tem quatro filhos. Três compatíveis entre si. Mas nenhum com Gabriel, 1 ano e 10 meses, que nasceu com imunodeficiência combinada grave. Uma falha genética em que o organismo não tem defesa para atacar infecções. “Aos 6 meses, Gabriel começou a perder peso drasticamente e teve uma séria pneumonia”, conta Karine. “Não consigo descrever o que senti quando soube que haviam encontrado o cordão. Foi como se todos os meus problemas tivessem acabado.” Gabriel foi submetido ao transplante em dezembro, no serviço de filantropia do Hospital Albert Einstein, e está sendo acompanhado no Instituto de Tratamento do Câncer Infantil. “Ele deve demorar um pouco mais de um ano para levar uma vida normal”, afirma a onco-hematologista pediátrica Juliana Folloni Fernandes.

Nos últimos dez anos, as doações de sangue de cordão cresceram mais de se­te vezes no mundo. “Esses transplantes não são como os de fígado ou rins, em que há uma fila porque um mesmo órgão pode beneficiar mais de uma pessoa”, diz José Mauro Kutner, gerente médico do departamento de hemoterapia do Einstein. O hospital mantém o maior banco público, em número de bolsas, do País. Além de colher o material na própria maternidade, a equipe do Einstein atua no Hospital Municipal Moysés Deutsch, na zona sul da capital paulista. Foi ali que a dona de casa Natália Santana, 26 anos, deu à luz Luís Henrique. Ela permitiu que o sangue fosse retirado, na esperança de salvar outro filho doente. “Infelizmente, assim como os irmãos, o Luís também tinha a síndrome Ipex”, lamenta Natália. Trata-se de uma desordem hereditária fatal e rara, caracterizada por diarreia crônica e outros distúrbios, como anemia e diabetes. Natália perdeu dois filhos com o problema. Um deles, Luís. Riquelme, 4 anos, teve a sorte de encontrar um cordão e fazer o transplante. Miguel, 1 ano e 3 meses, deve passar pelo procedimento em janeiro.

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