segunda-feira, 28 de agosto de 2017

Passionalismo, a nova doença urbana

Ao menor sinal de rejeição ou diante de um mero descontentamento, homens estão matando suas mulheres como nunca se viu no Brasil — e, em alguns casos, assassinam também os filhos e se suicidam

Crédito: Divulgação
TIROS NA MADRUGADAO casal Cláudia e Cristian: ela insistia para que o marido tomasse a medicação necessária; ele a matou a tiros e se suicidou (Crédito: Divulgação)
“Diz que eu não sou homem, diz agora que eu não sou homem, quem aqui não é homem?”, berrou diversas vezes André Luis Santos para Mizaelly Mirelly da Silva, uma jovem de vinte e dois anos. “Vo… cê não… é… ho… mem”, balbuciou Mizaelly com a frase entrecortada pela dificuldade de respirar ao estar sendo estrangulada. Seriam as suas últimas palavras. Morreu. O algoz foi seu namorado. Ao constatar que o corpo da parceira já estava inerte, André matou também o filho de sete meses. Fugiu. Foi preso pela polícia de São Paulo, onde o crime aconteceu. E confessou: “estrangulei porque eu não queria esse filho e ela não abortou”. O caso se deu no bairro do Jaguaré, predominantemente de classe média.
Um sofisticado condomínio no elegante bairro paulistano de Perdizes se transformou em palco de outro trágico e desesperador espetáculo de passionalismo na fria e garoenta madrugada do último domingo. O delegado de polícia Cristian Sant’Ana Lanfredi, em licença médica de seu cargo na Assembleia Legislativa de São Paulo devido a um severo quadro de depressão, saiu de seu apartamento com a filhinha de seis anos no colo e foi ao apartamento vizinho onde mora o padrinho da menina. Pediu então para que cuidasse da garota, alegando que sua mulher, a juíza do Trabalho Cláudia Zerati, acabara de abandonar o casamento, saíra do prédio e ele precisava localizá-la. A afilhada, assim que se viu em segurança, relatou outra história: sua mãe e seu pai haviam discutido muito porque ele se recusava a tomar a medicação antidepressiva prescrita pelo médico. Era tal o nervosismo da criança, que o padrinho pressentiu o pior. Desceu à garagem para conferir se os dois carros do casal estavam lá — e estavam. Chamou então o zelador, foram ao apartamento de Cristian e, coração na garganta, abriram a porta que estava destrancada: horror, sangue, morte. Segundo a polícia, Cristian matou a esposa com um tiro na testa e, na sequência, suicidou-se também com um tiro, disparado no lado direito da cabeça. Um dos relógios do apartamento marcava seis horas da manhã.
ESTÚPIDA EPIDEMIA
PURA PERVERSÃO O parceiro de Mizaelly a mandava falar “diga que não sou homem” enquanto a estrangulava. Ao vê-la inerte, matou o filho de sete meses
A cidade de São Paulo, a casa do Jaguaré e o condomínio das Perdizes são apenas um fechar de foco sobre um Brasil no qual se instaura e se espalha uma nova, estúpida, triste e psicótica epidemia — a epidemia da passionalidade. Em todo o País, nos últimos doze meses, estatísticas do Ministério da Justiça apontam que duas mil e oitocentas mulheres foram assassinadas por seus companheiros, numa questão de gênero, o chamado feminicídio. De volta a São Paulo, onde quatro mortes de mulheres aconteceram enquanto a polícia dava os primeiros passos na investigação do crime do condomínio já citado, estima-se que um feminicídio ocorra a cada quatro dias — setenta concentrados nos últimos meses, entre eles o que vitimou a auxiliar de enfermagem Nathalia dos Santos Silva. O criminoso fugiu.
Crimes passionais sempre aconteceram, e uma de suas motivações prevalentes é o ciúme — ou seja, o tolo ditado de que “o ciúme é o perfume do amor” pode até ser verdadeiro, mas desde que tal sentimento se mantenha num contorno de racionalidade. Fora disso não há fragrância, há cheiro de pólvora, vela e caixão. O que ocorre nos dias atuais, no entanto, é que o assassino mata a mulher, mata os filhos e, algumas vezes, se suicida, extinguindo da face da Terra o seu núcleo familiar — deixando-se claro que a maioria ainda prefere fugir. Mergulhando na mente dos que se matam após o crime, é como se fossem absurdas Medeias pelo avesso: na tragédia grega, a clássica personagem assassina os filhos para punir Jasão (que pretende abandoná-la), deixando nele a dor da perda das crianças. Quanto aos homens-Medeia do presente, eles punem a mulher, matando-a; punem os filhos, matando-os; e, paradoxalmente punem a si próprios, suicidando-se.
É inevitável que se indague a interlocutores e aos botões da nossa própria alma o que leva uma pessoa bem sucedida profissionalmente, família consolidada e situação financeira estável, a cometer homicídio seguido de suícidio. O que move as mãos para o gesto extremo e criminoso de matar? E a naturalidade da indagação vem do vício em considerar, numa imaginária escala de risco para esse tipo de comportamento, que a probabilidade de sua ocorrência esteja mais ligada a indivíduos em condições de vida simples e que não escalaram sequer a metade da pirâmide social. A resposta, quem nos dá, é a dura realidade, na medida em que apresenta aos nossos olhos tantos cadáveres de mulheres — e, eventualmente, de suas crianças. Tudo isso se deve à passionalidade que anda à flor da pele, à passionalidade que cega e vê numa rosa vermelha, por exemplo, não uma rosa vermelha, mas, sim, uma hemorragia. Vê no corpo da mulher que trai ou que parte não mais um corpo animado, mas, sim, um aboslutamentente nada.
No Rio de Janeiro, amigos e familiares do engenheiro Nabor Coutinho de Oliveira Júnior podiam esperar tudo na vida, menos que ele matasse a sua mulher, Lais Khouri. Pois ele a matou, e matou os dois filhos e se suicidou. A esposa morreu com facadas; as crianças a golpes de martelo; ele saltou do décimo oitavo andar do condomínio de altíssimo luxo em que a família morava na Barra da Tijuca. Faca, martelo, mergulho no ar, isso é mais que violência, é mais que a suprema irritabilidade a vazar pelos poros, é mais… não sei que nome dar. A sociedade está psicótica. E, caso após caso, a surpresa vem incomodar. O empresário Oscar Augusto Ferrão Filho, um dos sócios dos estacionamentos da Rede Park, atendeu mecanicamente o telefone que tocava, porque é assim que todos nós, acostumados a falar ao telefone, o atendemos. Veio a voz de seu irmão João Alberto. Veio a bomba atômica do terror e do macabro: “acabei de matar a minha mulher, a Renata, e agora vou me matar”. Um assessor da empresa correu à cobertura em que João Alberto morava no bairro paulistano do Itaim. Com certeza, gostaria de jamais ter visto o que viu: Renata estava tombada no closet com um tiro na cabeça; no andar de cima, na piscina, boiava, também já sem vida, o corpo do empresário. Em Recife, no bairro do Rosarinho (classe média alta), um namorado não aceitou na semana passada a separação amorosa e matou com crueldade a companheira (nomes preservados pela polícia). A não aceitação do final da vida a dois, aliás, vem sendo também motivo de crime, ao lado do ciúme, pagamento de pensão alimentícia e disputa pela guarda de filhos.
A MORTE PELO TELEFONE João Alberto telefonou para o irmão: “Acabei de matar a Renata (no detalhe), e agora vou me suicidar.”
Na cobertura em que moravam, um corpo tombou no closet, o outro, na piscina
País do feminicídio
Foi esse último fator, por exemplo, que disparou a ira e o revolver com que o PM Maurício Gama fulminou a ex-mulher Celina Mascarenha, na presença do filho. Quando o garoto lhe perguntou o porquê, ele respondeu com ironia e sarcasmo: “é para a mamãe descansar um pouco”. Há, no passado, dois episódios de passionalismo e irracionalidade que alimentaram até a mídia internacional: Doca Street matou a modelo Angela Diniz porque ela o traiu com outra mulher, e o cantor Lindomar Castilho assassinou a sua esposa Eliane de Grammont, porque ela já não o queria como marido. Existe, no entanto, um traço comum envolvendo esses delitos, independentemente de época ou gerações. Em todos eles, o homem feminicista é extremamente narcisista, coisifica a parceira e a transforma em sua propriedade. Não é incomum esse homem não estar nem aí para a mulher, enquanto ela permanece ao seu lado, mas desesperar-se e tornar-se violento se surgir uma ameaça de rompimento. Quando essa mulher, antes dominada e transformada em coisa (espelho narcísico do companheiro, pela psicanálise), cogita despedir-se da relação, o homem portador de tal transtorno vê sua “cristaleira de narcisismo” virar cacos. Não suporta isso, não crê que esses cacos se colarão novamente. E então mata na esperança de conseguir voltar a ser, ele mesmo, o seu espelho. O que está em jogo é prepotência e arrogância. Há no País uma estatística de tirar o ar: cerca de trinta por cento das mulheres assassinadas morreram nas frias mãos de seus parceiros.
Qual a solução para isso tudo? É difícil. Desensandecer uma sociedade e desarraigar essa espécie de comportamento não é o mesmo que tocar meia dúzia de malucos que tomam banho nus em um chafariz público. Mas, pelo menos, sabe-se qual não é a solução — e isso já é muita coisa. No Brasil, decretos e leis brotam do nada e não resolvem, igualmente, nada. A Lei Maria da Penha e a criação do termo feminicídio, por si só, não mudaram e nem mudarão o quadro de passionalidade. Demagogicamente Dilma Roussef criou essa expressão, e daí? O número de mulheres agredidas e mortas só fez aumentar exponencialmente, chegando ao seu auge nas últimas semanas e, infelizmente, sinalizando que seguirá crescendo. O temperamento humano (um dos fatores genéticos que compõem a personalidade) não muda por decreto. Homens portadores de transtorno da personalidade narcísica não deixarão de ter baixíssimo limiar de tolerância ao verem negado, por uma mulher, o menor de seus carpichos. Com certeza, é hora de reabrir o clássico Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Hollanda. Ele definiu e explicou porque a “cordialidade brasileira” é passional, e, assim sendo, pode explodir para o bem ou para o mal. Loucamente estamos vivendo na segunda alternativa. Que o diga a dor eterna dos parentes das mulheres assassinadas, dos parentes dos filhos assassinados, e dos parentes dos assassinos suicidas.
TRAGÉDIA NA BARRA DA TIJUCA O engenheiro Nabor e seus dois filhos: ele assassinou as crianças a golpes de martelo, matou a esposa a facadas e saltou do décimo oitavo andar do prédio onde moravam
Dentro dos contornos da violência a massacrar o gênero feminino pelo único fato de ele ser feminino, embora no caso a seguir não se possa falar direitamente em passionalismo porque isso implica idade adulta, é estarrecedor o que se viu em Goiânia na semana passada. Um garoto de treze anos matou a facadas uma adolescente de catorze, sua vizinha e colega de escola. É influência dos tantos episódios de crimes passionais? O menino fez o que fez porque psiquiatricamente é portador de transtorno de conduta (indicativo de psicopatia na vida adulta)? É de tudo um pouco. À polícia ele disse que assassinou Tamires Paula de Almeida e carregava a mórbida intenção de “acabar com mais duas”. Disse ainda: “foi para ver de luto a sala de aula”. Agora prepare a cabeça, o coração e o estômago: “matei Tamires porque mulheres são mais fracas”. Brasil, é muita dor.
Com reportagem de Thais Skodowski

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