Diferenças no encadeamento dos genes de mais de mil pessoas ao redor do mundo foram estudadas. Resultados podem trazer avanços para a medicina
Ricardo Carvalho

Nosso DNA é formado por milhões de combinações de nucleotídeos que se entrelaçam numa hélice em espiral
(iStockphoto)
Quando o assunto é genética, trocar um 'T' por um 'A' pode significar
muita coisa. Nosso genoma é formado por cerca de bilhões de cadeias de
nucleotídeos, aquelas trincas construídas por combinações das letras A-T
e C-G entrelaçadas na dupla-hélice do DNA. A forma como as milhões de
trincas de nucleotídeos se constroem e se encaixam é responsável por
definir todas as nossas características, da cor dos cabelos ao tamanho
do nariz. Mas e se uma ínfima parte dessa complexa engenharia também
estiver relacionada com a predisposição ao desenvolvimento de uma doença
rara?
Essa relação é bastante aceita na comunidade científica há alguns anos.
Só que a falta de uma ampla base de dados com os inúmeros encaixes e
variações de nucleotídeos possíveis sempre representou um desafio,
principalmente pelo tempo – e custo – que um estudo costumava demandar
no passado.
Opinião do especialista
Lygia Veiga
Professora do departamento de Genética e Biologia Evolutiva da Universidade de São Paulo (USP).
Professora do departamento de Genética e Biologia Evolutiva da Universidade de São Paulo (USP).
Não existe apenas um genoma humano, cada um de nós tem um diferente. Essas pequenas diferenças é que fazem que cada pessoa seja única, definindo a altura, cor do cabelo, etc. Tudo isso está codificado em pequenas variações. E parte dessas diferenças está relacionada com a nossa saúde, podendo estar ligada a algumas doenças genéticas.
A pesquisa também tem essa aplicação mais pragmática, já que essas variações raras determinam se uma pessoa pode desenvolver ou não um determinado quadro clínico. O trabalho servirá como referência e nos permitirá saber se uma variação rara é causadora de uma doença ou se a mutação acontece normalmente.
Esta pesquisa pegou o DNA de pessoas de várias populações e fez um catálogo de variações. Como a tecnologia para se sequenciar um genoma tem um custo muitas vezes menor do que antigamente, podemos montar um catálogo muito mais completo das variações entre diferentes pessoas.
São obstáculos que, aos poucos, têm sido superados. Um artigo publicado nesta quarta-feira na revista científica Nature
traz um dos maiores levantamentos das variações do genoma já realizado.
Assinado por uma centena de autores, o estudo mapeou o DNA de 1.092
pessoas de 14 grupos populacionais ao redor do mundo, comparando a
composição do genoma de cada um e identificando dezenas de milhões de
diferentes encaixes. No total, foram encontrados 38 milhões casos de
polimorfismos de nucleotídeo único [SNP, em inglês, indicado quando
apenas uma letra é alterada (exemplo: ATTACG vira ATTACC)], 1,4 milhão
de indels (inserção ou deleção de um único nucleotídeo) e 14.000
deleções de mais de uma letra.
O estudo faz parte da segunda etapa do 1.000 Genomes Project.
Os 1.092 participantes foram separados em quatro grupos ancestrais:
europeus, africanos, asiáticos do extremo oriente e americanos. O
objetivo dessa divisão era facilitar a caça por variantes ainda não
conhecidas, que pudessem ter sido causadas por milhões de anos de
evolução. "Antes, um outro estudo com mais de 1.000 pessoas já tinha
sido realizado, mas elas eram de uma mesma região. Com gente de vários
grupos étnicos, o número de diferenças encontradas é muito maior",
afirma a geneticista Mayana Zatz, do departamento de Genética e Biologia
Evolutiva da Universidade de São Paulo (USP) e colunista do site de VEJA.
Ninguém é igual — As variações foram catalogadas de
acordo com a frequência com a qual se manifestavam nos testes: as
vistas em mais de 5% das amostras foram consideradas "comuns"; as que
apareceram entre 0,5% e 5% das pessoas foram colocadas numa cesta
chamada "pouco frequentes" e as só observadas em até 0,5% dos exemplares
foram catalogadas como "raras". A comparação de resultados conseguiu
flagrar cerca de 98% das variações genéticas raras que ocorrem em pelo
menos 1% da população. "Ficam de fora as variações raríssimas, que
acontecem, por exemplo, apenas em uma família. Não daria para
identificá-las analisando casos aleatoriamente", diz a professora Lygia Veiga, também do departamento de Genética e Biologia Evolutiva da USP.
O surpreendente é que parte considerável das variantes raras
encontradas tinham funções negativas, alterando ou inibindo o
funcionamento de proteínas que estão relacionadas a doenças genéticas.
Só que os participantes eram pessoas saudáveis, o que indica que outras
mutações podem existir que anulam eventuais enfermidades. "Diversos
fatores permitem que as pessoas sobrevivam com tantos erros no genoma",
disse ao site de VEJA Aravinda Chakravarti,
da escola de Medicina do hospital Johns Hopkins e um dos autores do
artigo. "Às vezes a mutação é encontrada ao lado de um componente que
inibe a doença."
De acordo com ele, estudos futuros que detalhem os reais efeitos
que essas mutações raras causam no organismo poderão significar avanços
para a medicina. "No nível da genética, vai nos dar uma base de
comparação. Se vamos estudar certos quadros clínicos, precisamos
comparar a estrutura genética de pessoas enfermas com a de indivíduos
portadores dos mesmos genes negativos, mas que por alguma razão não
estão com problemas de saúde", explica.
Diversidade étnica – Mayana Zatz pretende
realizar um experimento semelhante na cidade de São Paulo. Ela está em
busca de pessoas saudáveis com mais de 80 anos para realizar o
mapeamento genético e buscar por variações. "A amostra precisa ser de
pessoas mais velhas, e sem quadro clínico, porque isso significa que
doenças genéticas associadas a alguma mutação dos genes não se
manifestaram", diz a geneticista.
Mayana pretende montar um banco de dados dessa população para
poder comparar as variações genéticas encontradas. "Vamos supor que
encontremos uma pessoa que tem um gene que destrói uma proteína, mas que
não apresenta quadro clínico. Isso sugere que algum outro gene está
compensando a ausência daquela proteína. Se a gente conseguir descobrir o
que inibe, abriremos novos caminhos." Ela aposta numa característica
particular da cidade para encontrar um grande número de variantes. "São
Paulo agrupa, num mesmo lugar, inúmeros grupos étnicos."
"Vamos entender a história das populações humanas em detalhes nunca antes vistos"
Aravinda Chakravarti
Médico da Escola de Medicina do Hospital Johns Hopkins e um dos autores do artigo
Médico da Escola de Medicina do Hospital Johns Hopkins e um dos autores do artigo
Qual a maior contribuição que o estudo traz?
Este estudo é a evolução natural do nosso entendimento da
variação (genética) em humanos e como isto se relaciona aos nossos
fenótipos (como o genótipo se relaciona com o ambiente), incluindo
doenças. Este projeto não apenas desenvolveu a técnica e os métodos
computacionais para a obtenção de um grande número de sequências de
genoma humano com começou estudos para interpretar o significado das
variações que ocorrem entre as pessoas. O aspecto mais importante (da
pesquisa) é quantificar o nosso conhecimento sobre a variação de
sequências do genoma humano; isso partindo de indivíduos aleatórios de
diversas linhagens, de modo que uma variação específica de uma doença
(como hipertensão) possa ser identificada. Dessa forma, esse
conhecimento nos está dando o material bruto para que possamos entender a
história das populações humanas em detalhes nunca antes visto.
Por que coletar dados de grupos étnicos diferentes?
Estudos genéticos similares nos últimos 30 anos jogaram luz em
diversos aspectos da evolução humana e migrações, mas os detalhes da
história ainda precisam ser descobertos. Está claro que as variações (no
genoma) em qualquer população depende do seu passado e da sua atual
demografia. O tamanho da população e a história migratória são dois
parâmetros-chave.
Como o material coletados nos bancos de dados poderia contribuir para a medicina, por exemplo?
De muitas formas. Por exemplo: se um indivíduo tem uma mutação
em um gene que está relacionada com uma determinada doença, estudar seu
código genético pode os dar evidência direta se esta pessoa está
protegida ou não daquela doença.
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