Estudos científicos decifram mecanismos
psicológicos e cerebrais que levam uma pessoa a se recuperar melhor e
mais rapidamente do sofrimento. E apontam os caminhos para desenvolver
essa capacidade
Mônica Tarantino
Alvo de interesse da psicologia e, mais recentemente, da
neurociência, a capacidade de superar as adversidades da vida (dos
conflitos e guerras às chateações domésticas e profissionais) com o
mínimo de desgaste é um campo de estudo em expansão. O que se quer saber
é por que alguns indivíduos se recuperam mais rapidamente do que outros
e parecem ter uma habilidade natural de superar traumas e obstáculos
com maior facilidade e menos sofrimento. E é exatamente isso o que
começam a revelar as novas pesquisas, apontando finalmente quais são os
segredos dos mais fortes. O conjunto de descobertas está trazendo à tona
desde caminhos da mente humana a serem explorados para fortalecer o
potencial de cada um de vencer problemas até a presença de proteínas no
sistema nervoso que interferem nas nossas reações diante das ameaças.
A primeira evidência obtida pela investigação científica é a de que
os mais fortes não formam uma população muito numerosa. Um estudo
inédito conduzido pela seccional brasileira da Associação Internacional
para o Gerenciamento do Stress, a ISMA-BR, mostrou que apenas 23% de um
total de 1.050 executivos testados quanto à sua capacidade de manter o
foco, a clareza de raciocínio e equilíbrio emocional em situações
extremas pertencia realmente ao time dos mais resistentes.
A psicóloga Ana Maria Rossi, presidente da ISMA-BR, que coordenou o
trabalho, quis saber mais sobre características dos que se saíram
melhor. “A maioria tem elevada autoestima (93%), autocontrole (86%),
maior flexibilidade para lidar com as mudanças (81%) e objetivos
definidos (72%)”, disse a psicóloga. Os membros desse seleto grupo são
chamados de resilientes. Na definição científica, resiliência é a
capacidade de se adaptar às situações para superar as adversidades com
menor nível possível de estresse.
Um dos trabalhos mais recentes e sólidos para desvendar o que se
passa na mente desses indivíduos foi feito pelos psiquiatras Steven
Southwick, da Universidade de Yale, e Dennis Charney, do Hospital Monte
Sinai, ambos nos Estados Unidos. Eles entrevistaram sobreviventes de
situações de intensa tensão, como mulheres expostas à violência e abuso
sexual, membros das forças especiais da Marinha (os SEALs, treinados
para agir em circunstâncias muito perigosas), combatentes que foram
prisioneiros na guerra do Vietnã, vítimas de terremoto e a população
pobre de um subúrbio de Washington. Todos tinham traços comuns de
personalidade que os fortaleciam diante do inesperado. A primeira
habilidade verificada pelos pesquisadores é a de identificar claramente
os desafios e vislumbrar sucesso na tarefa. Pesquisadores da
Universidade de Taiwan, na Ásia, definem essa característica como
otimismo realista, uma associação bem balanceada da visão positiva do
mundo com boas doses de realismo. “Em combate, por exemplo, ter um
otimismo irreal pode te matar”, diz Charney.


Ser fiel às próprias convicções foi outro achado dos psiquiatras.
Eles ficaram impressionados com a importância desse arcabouço moral para
os prisioneiros de guerra. “Mesmo sob tortura, eles permaneciam ligados
a algo maior, que os mantinha unidos”, observou Southwick. Os
americanos concluíram ainda que o altruísmo, a religião e a coragem para
enfrentar os medos também compõem a matéria-prima dos mais fortes.
Tão importante quanto a identificação dessas particularidades foi a
conclusão dos cientistas de que é possível aumentar a resiliência.
Segundo Charney, isso pode ser feito, por exemplo, com a terapia
cognitivo-comportamental. O método procura transformar a maneira como a
pessoa pensa e se sente diante de situações que provocam comportamentos
indesejados ou mal-estar para mudar suas reações a elas. Mas os
pesquisadores acreditam que a força para vencer as dificuldades começa a
ser semeada na infância, quando a criança precisa lidar com desafios
proporcionais à sua idade. “Na verdade, você está moldando a forma como
os hormônios do estresse e o sistema nervoso da criança responderão no
futuro. Isso afetará a forma como ela se comportará perante situações
duras na idade adulta”, diz Charney. O psiquiatra George Barbosa,
presidente da Sociedade Brasileira de Resiliência, concorda. “É como ser
alfabetizado, algo que se aprende. Na França, por exemplo, há debates
em sala de aula para discutir como enfrentar adversidades na vida”, diz.

Reforça a tese de que encarar algumas frustrações contribui para
aprimorar as respostas aos problemas um trabalho conduzido por um time
de universidades americanas e liderado por Mark Seery, da Universidade
de Buffalo. Os cientistas acompanharam por três anos 2.398 indivíduos.
Parte deles acabou exposta a um menu variado de fatalidades como
catástrofes climáticas, acidentes, doenças e divórcio. No final, Seery
concluiu que aqueles que passaram por algumas dessas circunstâncias, de
forma esporádica, demonstravam mais saúde mental e bem-estar do que
aqueles que tinham passado por muitos e fortes traumas e do que as
pessoas que não haviam sofrido nada. “Usamos critérios como os sinais da
angústia global, estresse pós-traumático e satisfação com a vida”,
disse Seery à ISTOÉ. Engana-se quem acha que ele constatou o óbvio. “A
exposição gradual e constante ao estresse pode levar ao desenvolvimento
de uma resistência maior. Isso resulta em alterações psicológicas e
fisiológicas que permitem aprender a lidar bem com as dificuldades”,
explica Seery.

De fato, o que a ciência já comprovou é que o cérebro é capaz de
modificar seu funcionamento de acordo com os estímulos que recebe. Isso
significa dizer que, dependendo das circunstâncias externas, o cérebro
pode reforçar um circuito de neurônios que nos incentiva a reagir ou
outro que, ao contrário, nos leva a nos entregar. Daí, por exemplo, a
importância salientada pelos americanos Southwick e Charney de deixar as
crianças se exporem a um pouco de frustração. É como se fosse uma
terapia de exposição gradual a algo contra o qual seu organismo pouco a
pouco fabricará anticorpos. A neuroplasticidade – essa habilidade de o
cérebro se reconfigurar segundo os estímulos que recebe – também ajuda a
explicar a eficácia da terapia cognitivo-comportamental. Ao treinar
sistematicamente a adoção de um novo padrão de pensamento – como
enxergar aspectos positivos e vislumbrar oportunidades de ação onde
antes só se via o lado ruim e impossibilidades –, um novo circuito
neuronal será formado, gravando esse raciocínio. No futuro, em situações
semelhantes, esse caminho de neurônios será acionado, auxiliando o
indivíduo a dar uma resposta mais assertiva ao problema.
Esse tipo de análise está descortinando um universo de possibilidades
para aumentar a resiliência de cada um a partir de intervenções na
fisiologia cerebral. Além de estudar como usar a maleabilidade do órgão a
nosso favor, a ciência está começando a identificar substâncias em sua
química que influenciam o quanto uma pessoa resistirá melhor ou pior ao
sofrimento. Um dos estudiosos do assunto é o psiquiatra Olivier Berton,
da Universidade da Pensilvânia (EUA). Partindo do reconhecimento de que
alguns indivíduos recuperam mais rapidamente suas habilidades sociais e
de raciocínio após um trauma, ele decidiu investigar as bases
moleculares dessa diferença.


Ao estudar o cérebro de ratos que se mostravam naturalmente mais
resistentes a estímulos estressantes, verificou que apesar de terem
grandes quantidades da proteína HDAC6 no cérebro, ela atuava com menos
intensidade sobre um grupo de neurônios relacionados ao humor e às
emoções em comparação ao que ocorria com outros animais do experimento.
“Essas cobaias parecem ter desenvolvido uma forma de reduzir o efeito
dessa proteína, protegendo seletivamente algumas células nervosas de sua
ação indesejável”, disse Berton à ISTOÉ. Para testar a hipótese, ele
reduziu, por meio de modificações genéticas, a quantidade da substância
sobre certos neurônios de cobaias. “Elas se tornaram menos vulneráveis e
mais resilientes”, diz o especialista. A constatação levou ao
desenvolvimento de drogas, agora em teste, para bloquear a ação da
HDAC6. “Algumas dessas moléculas poderão ser ministradas por via oral e
oferecem uma proteção impressionante contra o estresse, além de
potencializar o efeito de remédios antidepressivos clássicos”, diz o
pesquisador. “Falta muito para confirmar o potencial terapêutico dessas
novas drogas, mas são os primeiros estudos desse tipo e os resultados
são emocionantes.”
AUXÍLIO
Na empresa em que trabalha, Paulino treina profissionais
para que lidem melhor com as mudanças
Outra proteína na mira da ciência que pode ajudar a explicar o que
torna uma pessoa mais equilibrada diante dos problemas é o fator de
crescimento neural (SNGF, sigla em inglês). Trata-se de uma substância
ligada à sobrevivência, ao desenvolvimento e à atividade das células
nervosas. Maiores quantidades estão relacionadas a menores níveis de
emoções negativas durante confrontos. “Ela está envolvida nas respostas
imediatas ao estresse agudo. Ainda não estudamos seu papel sob o
estresse prolongado”, disse à ISTOÉ a psicóloga Heidemarie Laurent, da
Universidade de Oregon. A cientista avaliou a atividade da molécula em
40 adultos durante discussões com seus parceiros românticos. “É possível
que a proteína seja uma parte importante do quebra-cabeça que é
entender a resiliência”, disse à ISTOÉ Doug Granger, da Universidade do
Arizona. Ele coordenou o estudo e criou um teste de saliva capaz de
quantificar a substância. Os pesquisadores observaram também que jovens
submetidos a treinamento militar que possuem maiores níveis de SNGF
apresentam mais resistência e melhor saúde mental. “Uma das coisas que
fazem a SNGF tão diferente é que ela está associada a atributos
positivos. Em vez de ser um marcador de risco, SNGF tem potencial para
ser um marcador do índice de resiliência”, explica Granger.
CARACTERÍSTICAS
A psicóloga Ana Rossi estudou por que alguns são mais fortes do que
outros. Entre outras coisas, descobriu que essas pessoas têm mais
autocontrole e flexibilidade para administrar as dificuldades
O conceito de resiliência também está passando por uma ampliação.
“Ele deve levar em consideração as condições de vulnerabilidade em que a
pessoa vive”, explica a psicóloga Sandra Baron, da Universidade Federal
Fluminense, no Rio de Janeiro. Ela é uma das criadoras da Rede
Resiliência, articulação que reúne diversos laboratórios de pesquisa
para estudar o tema. Na faculdade, Sandra pesquisa o impacto da arte no
resgate da capacidade de se tornar mais forte. “É um meio de colocar
para fora marcas profundas que precisam ser trabalhadas de alguma
maneira”, diz. Um dos projetos que contemplam essa visão é a Orquestra
de Cordas da Grota do Surucucu, em Niterói, projeto social iniciado pela
professora aposentada Octávia Selles em 1995. Por meio da música,
dezenas de jovens conseguiram construir alicerces firmes para suplantar
as circunstâncias difíceis em que cresceram. “Muitos hoje são
professores de música em escolas e em outros projetos como o
Afroreggae”, diz a musicista Lenora Mendes.

Os novos conhecimentos sobre o tema começam a gerar aplicações no
mundo dos negócios. Na empresa Ticket, por exemplo, a diretora de RH
Edna Bedani criou cursos para melhorar a habilidade de pessoas que
lideram grupos em lidar com imprevistos e mudanças. “São dinâmicas para
aprimorar as respostas diante dos problemas”, diz. Na Whirlpool (reúne
as marcas Brastemp, Consul e KitchenAid), a percepção do executivo
Paulino Hashimoto, 57 anos, formado em relações públicas, levou-o a se
tornar um especialista em gerenciamento de mudanças, o que envolve a
cultura e os valores da companhia. Em anos de trabalho, ele desenvolveu
um método para auxiliar áreas inteiras da empresa a lidar com as
constantes transformações na atividade e no modo de trabalhar. “As
pessoas que optam por participar dos processos sugeridos percebem que
algo se modifica no seu jeito de encarar o novo. Elas entendem pelo que
irão passar, da resistência à aceitação”, conta Paulino. “Num mundo que
muda cada vez mais rápido, é necessário estimular a capacidade de se
adaptar sem sofrer”, conclui.
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