
Emily Coughlin, a garotinha sardenta que enfeita a página ao lado,
teve a chegada de seus 11 anos comemorada em casa, com os pais e os
amigos, naquela deliciosa combinação piscina-pizza-bolo. Foi em junho,
nos Estados Unidos, onde mora a americana. Singela, a celebração exalava
emoção. Sete anos atrás, quando Emily acabara de completar quatro anos,
a família recebeu a notícia de que a garota tinha neuroblastoma – um
tipo de tumor nas células nervosas. O mundo desabou, mas a medicina
conseguiu reerguê-lo. Depois de passar por um tratamento pioneiro usando
células-tronco – capazes de gerar vários tecidos –, a agora
pré-adolescente deixou a sentença de morte para trás e cultiva os sonhos
comuns às garotas de sua idade. “Ela quer ser professora e ajudar os
animais”, resumiu a mãe, Amy, à ISTOÉ. Simples e suave, como a vida deve
ser, principalmente quando está apenas começando.
Ainda nos EUA, Ava Christianson, diagnosticada com leucemia quando
tinha quatro anos, também festeja o cotidiano sem doenças agora que
alcançou os oito. Como Emily, Ava passou anos preciosos da infância
entre hospitais, médicos, exames, dor. Após ser submetida a um
procedimento inédito no Instituto Nacional de Saúde americano, a menina
recebeu alta. A boa notícia veio em agosto, e a família ainda se
acostuma com a ideia de que o sofrimento acabou.
No Brasil, é o adolescente Rikelmi Carvalho, 15 anos, que deixou os
dias tristes para trás. Trocou a cama do hospital pelo skate, paixão
antiga abandonada durante o tempo no qual sua energia era utilizada para
lutar contra o meduloblastoma (tipo de câncer cerebral). Foram dois
anos de briga, e o garoto venceu.

Há vinte anos, era muito pequena a chance de um final feliz para
Emily, Ava e Rikelmi. Bons resultados contra o câncer infantil eram
raros. Em alguns casos, sequer era possível ter esperança, como no dos
tumores do Sistema Nervoso. “Era um diagnóstico devastador”, lembra a
médica Lisa Diller, que iniciou sua carreira no início da década de 1990
no Dana-Farber/Boston Children´s Câncer and Blood Disorders Center, nos
EUA. Praticamente nenhuma criança sobrevivia a eles. Hoje, já como
diretora-médica da instituição, Lisa está em um cenário bem diferente.
Em média, cinco em cada dez jovens com esse tipo de câncer se curam.
Leucemias, um dos tumores mais comuns na infância, tiravam a vida de
oito em cada dez jovens. Agora, cerca de 90% ficam curadas. No tumor de
retina, o índice de cura chega a 93%.
A CURA AVANÇA
O quadro abaixo mostra como cresceu o índice de jovens que venceram a
doença nas últimas três décadas, de acordo com os tipos mais comuns
nesta faixa etária
TIPO DE TUMOR Há 30 anos Hoje
Leucemia Linfática 20% 87%
Retinoblastoma 20% 93%
Tumor Renal de Wilms 50% 88%
Osteosarcoma 5% 68%
Linfomas Hodgkin 30% 88%
Tumor de Ewing 10% 61%
Tumores do Sistema 0% 53%
Nervoso Central
Linfomas não-Hodgkin 25% 75%
Sarcomas de partes moles 10% 78%
*
Dados do A C Camargo Câncer Center (SP), um dos serviços de referência no tratamento da doença no Brasil
Remédios no alvo
A profusão de índices positivos enche olhos e corações. Como em tudo
na medicina, eles são resultado de uma combinação de fatores. O primeiro
é o conhecimento gerado nos últimos anos a respeito do câncer. Boa
parte dele foi impulsionada pelas informações do Projeto Genoma,
consórcio iniciado na década de 1990 que trouxe à luz dados fundamentais
sobre o material genético humano. Genes foram associados a tumores
específicos e, a partir daí, frentes inéditas de tratamento acabaram
abertas.
Em 2001, chegou ao mercado o remédio imatinibe, e o mundo conheceu a
terapia-alvo. Trata-se de um tipo de medicação que, diferentemente dos
quimioterápicos, ataca somente as células cancerígenas, poupando as
saudáveis. Faz isso porque atua sobre proteínas fabricadas por genes
relacionados ao tumor. Dessa maneira, chega somente no lugar certo. Foi a
primeira revolução. Indicada para o tratamento da leucemia mielóide
crônica, a droga mudou a história da doença, elevando o índice de cura
para patamares até então inalcançados. Depois dele, vieram muitos com
poder de ação sobre proteínas vinculadas a outros tumores.

Decifrar o DNA e suas implicações foi ainda a base para a confecção
da imunoterapia, a grande aposta hoje contra o câncer de adultos e
crianças. Em uma síntese simples, o método fortalece o sistema de defesa
para identificar e destruir as células doentes. Foi uma versão
sofisticada da técnica que salvou a pequena Ava, depois de várias
tentativas de tratamento. A menina foi a décima oitava pessoa no mundo a
ser submetida à CAR-T, uma forma de imunoterapia em teste que consiste
na retirada de linfócitos T (células de defesa) do paciente, na sua
modificação genética de forma a torná-los mais aptos ao reconhecimento e
destruição das células tumorais, e depois na sua reinfusão. Como
soldados mais bem preparados, os linfócitos ganham poder para vencer a
guerra.
O aprimoramento dos transplantes de medula óssea foi outro passo
decisivo para elevar as taxas de cura. O procedimento permite a
administração de altas doses de drogas para matar tumores sem que haja
destruição da medula. Ela é a responsável pela fabricação das células
sanguíneas, o que inclui as de defesa. Portanto, deve ser preservada. O
jeito convencional de ser feito é tirar as células do paciente, atacar o
corpo com os quimioterápicos e depois recolocá-las. Há algum tempo,
porém, descobriu-se que era possível extrair do paciente células-tronco.
E elas passaram a repovoar a medula óssea, reconstruindo o órgão.
NO COMEÇO DA VIDA, OS TUMORES SÃO DIFERENTES
O câncer infantil guarda características distintas das apresentadas quando a doença se manifesta na idade adulta
ORIGEM
• Em geral, são resultado de alterações genéticas ocorridas bem cedo, algumas ainda dentro do útero
• Nos adultos, o surgimento da doença está bastante associado ao
estilo de vida. Fatores como obesidade, fumo e sedentarismo expõem
gradualmente as células às mudanças que podem desencadear um tumor
TRATAMENTO
• As crianças respondem melhor aos quimioterápicos
• Os efeitos colaterais das drogas usadas são mais intensos
ATITUDE DIANTE DA DOENÇA
• Os pequenos não sentem culpa, ao contrário de muitos adultos, que se acham responsáveis por terem desenvolvido a enfermidade
• Sua capacidade de adaptação à rotina de exames e tratamentos é maior
• A aceitação da doença também é mais fácil
MAIS DOADORES
O método começou a ser usado em adultos. Lisa Diller, do Dana-Farber,
perguntava-se por que não adotá-lo em crianças. Seguiu adiante com a
ideia e criou uma tecnologia para que a técnica fosse utilizada em seus
pacientes. Depois, desenvolveu um protocolo para o tratamento do
neuroblastoma e concluiu que se um transplante já era bom, dois seria
melhor. Usando essa fórmula, ela conseguiu resultados impressionantes.
Mais de 600 crianças com idade média de três anos foram submetidas ao
experimento. Três anos depois, 62% das que haviam recebido dois
transplantes estavam curadas. A menina Emily Coughlin é uma delas.

Nos transplantes em que há necessidade de doação, o progresso também
foi incrível. Antes era possível realizar o procedimento apenas com
doadores 100% compatíveis, o que significava um grande impedimento. Para
se ter uma ideia, parentes próximos como pais e irmãos têm 25% de
chance de compatibilidade. Nos bancos de medula óssea espalhados pelo
mundo há 25 milhões de cadastrados, mas a chance de encontrar alguém
compatível é de uma em cem mil. O desenvolvimento do transplante
haploidêntico reduziu as dificuldades ao possibilitar que o método seja
executado mesmo quando a compatibilidade entre doador e receptor é de
somente 50%. “Foi um dos grandes avanços”, diz o hematologista Vanderson
Rocha, coordenador do Setor de Transplante de Medula Óssea do Hospital
Sírio-Libanês, em São Paulo, membro da Associação Brasileira de
Hematologia e professor de Hematologia da Universidade de Oxford, na
Inglaterra. O método dá certo porque inativa as células do doador com
potencial para causar rejeição pelo receptor.
Dentro das salas cirúrgicas, a evolução se deu na forma da precisão.
No Graacc, em São Paulo – instituição referência no tratamento de câncer
infantil, um aparelho de ressonância magnética a disposição do
cirurgião permite que ele navegue dentro do cérebro de uma criança com
segurança. As imagens obtidas durante a operação oferecem o mapa. Feitas
dessa forma, as operações oferecem menos risco e menor tempo de
recuperação. “Reduzimos em 30% a necessidade de uma segunda cirurgia”,
diz o médico Sérgio Petrilli, diretor do centro.
Eles não são mini-adultos
No Graacc, outros métodos evidenciam o refinamento atual no combate
ao câncer infantil. Um bom exemplo é o que está sendo executado contra o
tumor de retina. Hoje é possível fazer com que o remédio chegue
exatamente nesta estrutura do olho. Um cateter colocado na artéria
femoral, que depois segue para a artéria oftálmica, leva o medicamento
até a retina, onde o remédio é ministrado.
As crianças costumam enfrentar a doença melhor do que os adultos.
Adaptam-se mais à rotina dos hospitais e às adversidades
O que os médicos também aprenderam é que nenhum tratamento é
bem-sucedido se os cuidados se limitarem à destruição do tumor. Até que
isso aconteça, várias outras complicações aparecem. Vão de infecções
geradas pela queda da imunidade a problemas motores devido à fraqueza
muscular. Sem a atenção a essas condições periféricas, o paciente pode
perder a batalha. É também esse amparo que está levando Rebeca Radulova,
sete anos, à vitória contra um tumor no Sistema Nervoso Central. Ao
longo do tratamento, ela ficou sem andar e não conseguia engolir
direito, entre outras intercorrências. Nutricionistas, fonoaudiólogas,
fisioterapeutas e outros profissionais socorreram a garota. “Estamos no
caminho da cura”, diz Flávia Radulov, mãe da menina.
O skatista Rikelmi Carvalho usufruiu de estrutura semelhante quando
se tratava do meduloblastoma. “A recuperação dele foi difícil”, lembra a
mãe, Edileuza de Carvalho. O menino teve convulsões depois das
cirurgias a que foi submetido, apresentou dificuldades de visão e ficou
com a imunidade baixa. Médicos e outros profissionais entraram em cena
para ajudar o adolescente a cada complicação que surgia.
Nesse esforço, o auxílio psicológico é vital para a criança e sua
família. A esteticista Marta Torres e sua filha, Nicole, dez anos,
saíram de João Pessoa, na Paraíba, e chegaram a São Paulo em busca de
ajuda depois que a menina teve diagnosticado um tumor cerebral. Sem a
estrutura que lhes oferta sustentação emocional, teria sido muito mais
difícil. “Ela estava assustada, acha que ia morrer”, lembra a mãe. “Com
acompanhamento psicológico, está bem.”
Por trás da maioria dos avanços contra os tumores infantis hoje
festejados, há um entendimento que pode parecer óbvio, mas não foi e por
muito tempo: o de que criança não é um mini-adulto. Simplesmente
transpor o que era feito com os mais velhos para os pequenos estava
errado. Os tumores das crianças são diferentes dos manifestados pelos
adultos. Em geral, são mais ligados a fatores genéticos e a erros
ocorridos no desenvolvimento embrionário. “Eles não têm a ver com
fatores de risco associados ao envelhecimento e ao estilo de vida, como
no caso dos adultos”, explica a oncopediatra Viviane Sonaglio, do A. C.
Camargo Cancer Center, em São Paulo. O metabolismo das crianças é mais
acelerado – elas estão em crescimento – e os efeitos colaterais dos
remédios, mais intensos.

Mas a maior diferença talvez seja na forma de lidar com a doença. Por
serem frágeis fisicamente, imaginamos que fiquem mais vulneráveis à dor
emocional que o câncer traz. Não é assim, no entanto. “A criança não
tem a culpa que o adulto apresenta”, diz Viviane. “Não fica se
perguntando ‘o que eu fiz para merecer isso’”. A capacidade de adaptação
à rotina de hospital e a aceitação das adversidades são mais fortes.
Viviane, que vive o dia a dia dessas crianças doentes, diz que elas
tornam mais leve a vida de quem as acompanha. “É difícil ver uma criança
triste no hospital.”
Há obstáculos que ainda precisam ser superados, claro. “Aprimorar o
diagnóstico é um deles”, diz Teresa Fonseca, presidente da Sociedade
Brasileira de Oncologia Pediátrica. Isso realmente é importante para que
casos como o de Lucas das Mercês, onze anos, não aconteçam mais. Com os
primeiros sintomas de câncer cerebral, o menino passou por um posto de
saúde, onde ninguém percebeu o que poderia ser, depois por um hospital,
até chegar a uma instituição, vinculada a uma faculdade de medicina, na
qual a doença foi identificada e, felizmente, tratada a tempo.
Com o trajeto para a cura pavimentado, a medicina começa a se
preocupar com o depois. Os tratamentos podem deixar sequelas, como
problemas de infertilidade ou cardíacos, e no campo social, dificuldades
nos relacionamentos familiares (irmãos, principalmente) e na escola.
Por isso, serviços no mundo acompanham os pacientes também na vida
adulta. “Devemos preparar as crianças para a cura“, afirma o oncologista
Vicente Odone Filho, do Instituto de Tratameno do Câncer Infantil. “E
para a vida.”
AS QUATRO PRINCIPAIS RAZÕES PARA O SUCESSO DOS TRATAMENTOS
1. Maior conhecimento da biologia infantil e de como os tumores se desenvolvem na infância
2. Aprimoramento dos chamados recursos periféricos,
usados para cuidar de efeitos colaterais dos remédios ou de
complicações, como infecções
3. Chegada de medicações mais modernas, voltadas para atacar especificamente o tumor e não os tecidos ao redor
4. Desenvolvimento de técnicas cirúrgicas mais
precisas. Algumas têm o auxílio de imagens, por meio das quais os
cirurgiões podem se guiar e chegar exatamente onde desejam
Fotos: André Lessa/AG. Istoé; Arquivo pessoal; fotos: andré lessa/ag. istoé; arquivo pessoal