domingo, 23 de agosto de 2009

Medicina espetáculo

Desde a década de 60, a curiosidade pelas doenças e acidentes inspirou séries médicas que abordavam na ficção o dia a dia dos profissionais de saúde e os bastidores das emergências dos hospitais. Em 1994, a série "Plantão Médico" - encerrada em abril após 15 anos de sucesso - se tornou modelo no gênero e originou programas semelhantes. O estilo foi tão bem recebido que migrou da ficção para a realidade, inaugurando a era da medicina-espetáculo. Os reality shows médicos são a nova febre dos canais pagos e têm até uma versão brasileira em rede aberta. Há pelo menos sete programas do gênero em exibição no País atualmente, todos com audiência crescente e cativa.
O Discovery Home & Health tem até mais de um. As estrelas do canal são "Medicina de Peso", com os detalhes das cirurgias bariátricas, e "Hopkins", que retrata a rotina dos médicos no hospital de Baltimore (EUA). Ele também apostou nas séries "Enigmas da Medicina e Diagnóstico Desconhecido", com histórias reais sobre as doenças raras dos pacientes. Até a atriz americana Farrah Fawcett fez um documentário, "Farrah's Story", para contar em detalhes sua luta em busca de tratamentos contra o câncer que a matou, em julho deste ano. Um dos pioneiros do formato "medicina realidade" é a série "Dr. Hollywood", iniciada em 2004 e exibida no Brasil pela RedeTV!. O programa mostra o trabalho do popular cirurgião plástico de Beverly Hills, dr. Robert Rey, durante as suas intervenções plásticas. Há detalhes, do corte do bisturi à sutura, além do resultado final.
A versão brasileira dessa onda estreou em abril. O "E24 (Emergência 24 horas)" - exibido pela Band às terças-feiras, às 22h30 - mostra o cotidiano dos bombeiros, profissionais de saúde e os detalhes crus das cirurgias e do atendimento de emergência nos hospitais públicos de São Paulo. O produtor e o cameraman do programa acompanham o plantão dos bombeiros quatro vezes por semana e fazem a cobertura completa do atendimento e das cirurgias. "Mostramos apenas uma parte da realidade, optamos por um recorte positivo", diz o produtor Mariano Feijoo. Os médicos que participam do programa dizem que a equipe de produção não atrapalha e aprovam o formato. "As pessoas querem saber como são tratadas quando estão desacordadas", afirma Mário Issa, médico do Instituto Dante Pazzanese, que realizou uma cirurgia cardiológica diante das câmeras. "É uma forma de elas perceberem que o paciente do sistema público também tem acesso a um tratamento de ponta", afirma. Daniela Paoli, médica do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), é uma das presenças garantidas no E24. "Ele mostra como evitar acidentes e a importância do atendimento de resgate."Atendendo aos apelos da curiosidade mórbida, a medicina-realidade do E24 atinge as vísceras do pronto-socorro - mostra a fratura exposta da criança que foi atropelada, o ladrão que levou cinco tiros, o homem que se jogou do sexto andar. Soa bizarro, mas é difícil atirar a primeira pedra no telespectador. Afinal, quantas vezes dirigimos devagar para ver os detalhes (ainda que assustadores) de um acidente de trânsito ao lado? Em maior ou menor grau, somos todos espectadores do show dos dramas humanos, seja na ficção, seja na realidade. "É uma forma de nos sentirmos melhores por não estarmos naquela situação", avalia a psicóloga Marília Millan, autora da tese 'Reality Shows - Uma Abordagem Psicossocial'. "Assistir a esses programas satisfaz os nossos impulsos sádicos e masoquistas", diz.
As séries têm trunfos que vão além do fascínio pela desgraça alheia. A estética do vídeo em alta velocidade, a correria das emergências, a necessidade de não perder tempo no resgate e a alta eficiência nos procedimentos cirúrgicos e diagnósticos entram em sintonia com o imediatismo e o culto à alta performance na sociedade pósmoderna. Não é raro encontrar na vida real um modelo de herói que faz o tipo dr. Gregory House, interpretado pelo ator inglês Hugh Laurie na série "Dr. House" - exibido pela Universal. A arrogância do personagem é disfarçada pelo seu brilhantismo, implacável no acerto dos diagnósticos.
Mas nem toda a classe médica aprova estes programas. "Esse tipo de exposição é um absurdo", acusa Antônio Carlos Lopes, presidente da Sociedade Brasileira de Clínica Médica, em referência ao "E24". "É um sensacionalismo que não traz nenhum benefício e pode gerar uma má interpretação dos procedimentos médicos." Ele afirma que o Conselho Regional de Medicina deveria proibir o programa, que viola a relação de sigilo entre médico e paciente. É justamente o desvelo do segredo clínico que alimenta a curiosidade, segundo Marília Millan. "As pessoas são seduzidas pela possibilidade de entrar num universo misterioso e ter acesso a um conhecimento hermético, restrito apenas à classe médica", diz Marília. Por isso, é certo, o show vai continuar.

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