sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Saúde pública: progressos e regressos

A MELHORA da expectativa de vida da maior parte da humanidade, dos 40 anos ou menos no início do século passado para 70 ou mais em grande parte dos países desenvolvidos e mesmo nos países em desenvolvimento, entre os quais o Brasil, não foi causada por progressos na medicina curativa, pois 90% ou mais desse resultado deve-se a providências de saúde pública. Vacinação com certeza foi uma das destacáveis conquistas. Saneamento básico -ou, no mínimo, o fornecimento de água potável segura- é citável a seguir, por evitar as maiores causas de mortalidade infantil: as diarreias infecciosas.
Outras mudanças socioeconômicas também têm relevância, como o aprimoramento da situação habitacional e a troca do cavalo pelo automóvel: morriam mais pessoas em acidentes equinos do que nos nossos carros. A campanha contra o tabagismo destaca o potencial de levar a uma intensa diminuição das consequências da aterosclerose, além da significativa diminuição dos casos de câncer de pulmão, cabeça e pescoço ou de bexiga, com certeza: pode ser que também diminuam outros tumores, e a percepção de que o fumo passivo também oferece riscos é mais um dado que deve ser levado a sério para que o vício seja ainda mais limitado.
Os grandes êxitos de ações de saúde pública, porém, foram acompanhados de um relativo desmonte dos órgãos encarregados das providências relacionadas à dita cuja. O que até tem sentido: quando as coisas vão bem, governos acham que isso está parcialmente resolvido e investem em empreendimentos que ainda não o estão. A jornalista Laurie Garrett escreveu um calhamaço ("The Betrayal of Public Health") mostrando que houve grande relaxo nos programas de saúde pública nos EUA e em outros países desenvolvidos.
Consequências seguiram-se: a expansão da tuberculose em todo o mundo envolve várias causas, como a epidemia de Aids e a resistência progressiva da bactéria causadora aos quimioterápicos, mas, indubitavelmente, o controle da doença piorou. Menos profissionais da saúde interessaram-se por esse assunto e até uma especialidade brasileira, a tisiologia, dedicada especificamente à tuberculose, desapareceu.
A própria epidemia de Aids estaria mais satisfatoriamente controlada se órgãos de saúde pública estivessem mais bem equipados. Os laboratórios de saúde pública, essenciais no diagnóstico e na vigilância, só ficaram mais contemplados nos Estados Unidos depois que a epidemia de Aids estava plenamente em curso.
E nós, no Brasil? Contamos com algumas glórias, sim: nosso programa de vacinação é muito bom, mesmo diante de padrões internacionais. Poderíamos e deveríamos expandi-lo logo com novas vacinas, como as contra varicela, doença pneumocócica, doença meningocócica e hepatite A, não restringindo o acesso a imunobiológicos. O fato de serem dispendiosos não é desculpa, porque as doenças saem mais caro.
O povo brasileiro aceita muito bem vacinas, ao contrário de grupos nos EUA e na Europa que inventam asneiras, como "a tríplice possa causar autismo": isso não tem nenhuma base em evidências.
A vigilância epidemiológica melhorou muito, ao menos no Estado de São Paulo. Há articulação que não havia entre Estado e município, razoavelmente ágeis na informação adequada sobre problemas de saúde pública. Mas continuamos com problemas, principalmente na área diagnóstica.
Nossos laboratórios de saúde pública continuam com poucos recursos e com pessoal insuficiente. A carreira de pesquisador em laboratório de saúde pública não é valorizada: um pesquisador nesse setor ganha menos que 1% de um deputado em Brasília. Nem vamos citar quanto vale um para a sociedade comparado com o outro.
Nossos órgãos diretivos de saúde pública contam com sanitaristas sem prática e noção do dia a dia na linha de frente: muitos só viram um doente na época do curso de medicina.
O órgão regulatório quanto aos exames laboratoriais -Anvisa- é excessivamente burocratizado e atrasa a capacidade de fazer testes no Brasil. O SUS ignora solenemente exames, bem como remédios, que são usados e conhecidos há pelo menos dez anos no exterior, impedindo que brasileiros tenham acesso a eles. Em que ficamos? Que a saúde pública está melhor, pelo menos em São Paulo, do que em outras épocas, como na fase da ditadura. Mas dá para melhorar muito.
VICENTE AMATO NETO, 82, médico especialista em clínica de doenças infecciosas e parasitárias, é professor emérito da Faculdade de Medicina da USP.

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